MANUSCRITOS I

Meu personagem favorito.

Estava com Loureiro em uma taberna na pequena e secular cidade próxima da montanha que acolhe o mosteiro. Tínhamos acabado de trocar ideias sobre sofrimentos e decepções. O bom sapateiro fundamentara, com mestria, que o amor não é causa de nenhuma dor e vem sendo injustiçado, desde sempre, por darmos ouvidos às sombras, emoções sem nobreza, ao invés de compreendermos toda a grandeza de um sentimento capaz de mudar o mundo pela capacidade de fazer florescer o melhor que existe em nós. Já tínhamos solicitado a conta, quando, de repente, ele diz: “Mas penso que não é só. Sempre que falamos das sombras nos referimos àquelas mais conhecidas como inveja, medo, ciúme, vaidade e ignorância. Muitas vezes esquecemos a mentira, talvez por nos ser tão íntima”. Confesso que fiquei atônito. Ele percebeu, riu e explicou: “De todas as sombras, talvez a mentira seja o cárcere de libertação mais difícil, por ser a mais sorrateira. Falo da mentira que contamos para nós mesmos. Ela nos leva à fuga da realidade na ilusão do conforto de quem teme as atribulações do bom combate. Essa sombra no leva a criar e a interpretar papéis distantes da verdade”. Deu uma pequena pausa e foi adiante: “Existe mais da nossa essência na parte que escondemos do que no pedaço que mostramos; há mais oculto no fundo da gaveta do que aquilo exposto na vitrine. Isto é o que vendemos de nós, aquilo é o que somos. Esta é a razão de muitas frustrações”.

Pedi para que fosse mais claro no seu raciocínio. O bom sapateiro teve boa vontade: “Criamos personagens, repletos de virtudes que ainda não temos, a nos representar nos círculos sociais. Todos desejam ser amados, admirados e idolatrados. Na superfície todos conseguem se mostrar bons e circulam na ilusão de ser o que ainda não são. No entanto, os relacionamentos impõem a hora do mergulho profundo”. Deu uma pausa e concluiu: “Então, a intimidade irá revelar o melhor e, também, o pior que há em nós. É inevitável”.

O elegante artesão tinha o olhar perdido em alguma página da sua história e falava como quem explica um fato distante: “Em geral, não preparamos o outro para nos ver atuando sem nossas fantasias sociais. O ego que criou o personagem na tolice de nos proteger, cedo ou tarde, subirá à tona para mostrar a verdadeira face, aquela que ocultamos. O ‘eu’ vai ficar nu. Nenhum truque se sustenta para sempre. Daí surgem as decepções, conflitos, e sofrimentos, nesta ordem”.

“Algumas pessoas abusam mais, outras menos, dos personagens na medida da falta de coragem para encarar quem realmente são. É necessário enfrentar a verdade, sem adereços, com humildade, como primeiro passo para se transformar e vivenciar as suas infinitas possibilidades. Não se chega à próxima estação sem enfrentar a estrada. Ainda que haja curvas, pedras e tempestades, as dificuldades fortalecem e aperfeiçoam o viajante”.

“Nem todos estão dispostos a se deparar com as verdades da alma, com suas frustrações e insucessos. Então, nos escondemos sob o manto das ilusões oferecidas pelo ego, a nos enganar, na vã esperança que ele nos conforte e proteja para sempre. Usamos as máscaras que ele nos empresta no baile em homenagem à mentira. Até que o Caminho, na exigência do movimento da cura pela verdade, despe o personagem que criamos para interpretar as histórias que gostamos de contar sobre nós mesmos. Cedo ou tarde, nos obriga a olhar para o espelho. Estar frente a frente consigo é mirar nos olhos da verdade e entender toda a sua força revolucionária. É doloroso em um primeiro momento, por estar sem maquiagem, não encontrar a perfeição que se iludiu. Mas só assim descobrimos o que precisa ser modificado, o que temos que deixar para trás. Entendemos, principalmente, que não somos o nosso discurso, mas as nossas escolhas”.

Comentei que deveriam existir alguns modelos mais comuns de fantasias, arquétipos do inconsciente coletivo. Loureiro concordou:  “Existem muitos e posso exemplificar alguns. Um personagem muito usado hoje em dia é o da ‘pessoa séria, muito ocupada, que não tem tempo para os outros’, em uma clara demonstração de fuga do convívio, da intimidade, por medo de revelar que tem pouco para mostrar ou de mostrar o que anseia esconder. É a débil máscara do forte, a fantasia curta do poderoso. Na verdade, ocultamos aquilo que não temos coragem de enfrentar. Levanta-se muros para que ninguém descubra as nossas fraquezas, quando na verdade precisamos de pontes para atravessar esses abismos. Somente quando admitimos as dificuldades nos tornamos aptos a superá-las. Para ser grande é necessário trilhar o caminho do pequeno. Isto se chama humildade. Esta virtude lhe fará aceitar a condição de aprendiz, de que ninguém nasce pronto, e assim permitirá, não sem muito trabalho, que aos poucos revele toda a grandeza que habita em seu coração”.

“Existe também o personagem do ‘falso alegre’, aquele que precisa estar sempre rodeado de gente e, de preferência, barulho. Que fique bem claro que diversão, amizade, alegria e movimento são coisas maravilhosas. Mas há que se ter hora para todas as coisas, a fazer bom uso do tempo, este tesouro finito. Por que o medo de ficar à sós consigo? De ouvir a música do silêncio? De conversar com o próprio coração? A solidão tem sido amaldiçoada por mal compreendida. Solidão não significa abandono, mas a viagem que o ego faz aos jardins da alma. O retiro necessário para percebermos as máscaras que atrapalham, por ineficazes, a conquista da plenitude; as fantasias que ficaram velhas sem conseguir sustentar a felicidade; a maquiagem que borrou por tantas lágrimas ao perceber que a paz não se encontra nas prateleiras da ilusão, mas precisa ser construída pela verdade de se conhecer por inteiro e, então, se transformar. Ser feliz é uma escolha consciente que exige determinação e coragem para estar consigo próprio e ouvir a voz que brota no coração”.

“De todas as fantasias, a mais triste é a da ‘vítima’. São aqueles que se dizem bons e generosos, porém alegam ser enganados ou sabotados por todos o tempo todo. Usam a máscara do drama para transferir aos outros a responsabilidade pelo seu sofrimento, escondendo de si mesmo a atribuição de trabalhar a própria evolução. É como se desejassem uma carona até a próxima estação para não ter que enfrentar as dificuldades do Caminho. Esquecem que os problemas que nos perseguem nada mais são do que as lições que precisamos aprender, as transformações que devemos forjar no próprio ser. Ignoram que a batalha final é travada dentro de cada um de nós”.

Loureiro tomou um último gole de vinho e alertou: “É importante se reinventar todos os dias, pois faz parte do processo primoroso de transformação. No entanto, é preciso que se funde os alicerces da verdade nas rochas da humildade, alegria e coragem, afastando-se, a cada dia, dos pântanos da ilusão, da mentira e do medo que atolam a evolução”.

“É imperioso desvendar o véu da fantasia que enevoa as mudanças necessárias exigidas pela alma despida. Embora seja um processo difícil, pois muito do aparente conforto do personagem será substituído pelo esforço no desenvolvimento do verdadeiro eu. O autoconhecimento é indispensável à cura. Cura das imperfeições, dos traumas e do sofrimento através do remédio da verdade, na lapidação das cascas de si mesmo até que se reflita a mais pura luz. Semear e cultivar a essência que nos habita, na beleza de ser único e parte do todo, ao mesmo tempo”.

Deu uma pequena pausa e concluiu antes de se levantar: “Cada qual é a nau a atravessar as tempestades das próprias ilusões, aprendendo a manobrar com os ventos da verdade, a navegar pela luz da fina sabedoria. A vida é o mar, os encontros são os portos e o amor é o destino”.

Já de pé, me ofereceu um sorriso maroto e provocou: “Yoskhaz, qual a sua máscara?”. Rimos.

 

 

 

1 comment

Ana Maria dezembro 4, 2015 at 9:27 pm

A fantasia é o termostato da alma…
Tão necessária quanto o ar que respiramos. É tão essencial e tão visceral que muitas vezes é imperceptível à consciência.
Algumas vezes esse termostato fica desregulado e a fantasia ocupa espaço demasiado nas relações e na vida. Tendemos a fantasiar para fugir da dor.
Daí nasce a literatura, a pintura, a arte de um modo geral.
Só se torna problema quando não conseguimos distinguir entre o que é real e o que é fantasia. No que tange à visão que temos de nós mesmos, é sempre difícil distinguir o que é real do que é irreal sobre nós mesmos.
Todos os arquétipos mencionados por Loureiro são difíceis de serem percebidos no nosso próprio ser. Somos capazes de reconhecer nos outros, mas em nós, é um desafio dos grandes.
Senti muito a leitura desse texto porque me reconheci na pele da vítima…já vinha refletindo sobre essa vitimização nos últimos tempos e foi muito providencial ler aqui.
Obrigada.

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