MANUSCRITOS I

Tristes credores.

 

O vento frio do outono circulava junto comigo pelas estreitas e sinuosas ruas de pedra da secular cidadezinha situada no sopé da montanha que abriga o mosteiro. A tarde ainda estava pela metade, eu já tinha encerrado os meus afazeres e aguardava uma carona que só aconteceria no início da noite. Meu corpo encolhido se protegia das rajadas por entre muros e reentrâncias das charmosas construções, até que vi a antiga bicicleta de Loureiro, o elegante sapateiro, amante dos livros e vinhos, encostada no poste em frente à sua oficina. Consertar sapatos era o seu ofício; remendar almas, um dom. Satisfeito com a sorte, pensei que nada podia ser melhor do que um café quente acompanhado de boa conversa em um final de tarde vadia. Assim que entrei na loja quase fui derrubado por uma bela mulher, já de meia-idade, que saiu como um trator desgovernado pela própria irritação. O bom artesão me recebeu com o seu melhor sorriso e, logo após sentarmos diante de duas canecas fumegantes colocadas sobre o balcão da oficina, disse se referindo a mulher que por pouco não me levou ao chão: “É uma credora emocional. Uma triste e eterna credora”, deu uma pausa antes de completar: “Pelo menos é assim que se arvora diante de todos que cruzam os seus passos”.

Eu quis saber sobre a razão do termo. Ele explicou: “Os tristes credores são aqueles que não sabem reagir diante das dificuldades que se impõem. Como sabemos, sempre viveremos situações desconfortáveis e, por pior que seja, o problema nunca é o problema em si, mas a dificuldade de reação diante da situação. A inércia é prejudicial e surge por não percebermos as lições escondidas por trás de todos os problemas. É fundamental entender que todos os conflitos trazem consigo mestres ocultos a despertar o melhor de nossas capacidades. Todos os problemas são ferramentas de transformação pessoal, desde que o enfrentemos com dignidade e sabedoria”.

Deu um gole e continuou: “No entanto, o triste credor prefere vestir a máscara da vítima e indicar um culpado pelo próprio sofrimento. Assim, de maneira inconsciente, paralisado pelo medo de enfrentar a situação, na verdade, deseja que o outro resolva um problema que cabe a ele solucionar. É uma atitude cômoda e bastante infantil, mas comum em muitos adultos, que leva ao desespero, ao ódio e até mesmo a depressão. Eles são completamente refratários a qualquer responsabilidade, sempre tendo um eleito para derramar a culpa pela sua decepção, o que acaba por levar a grandes sofrimentos. Repare, estão sempre brigando com todos, apontando os defeitos alheios e reclamando das imperfeições do mundo”.

“Assim, de maneira absurda, se creditam de infundados direitos sobre os outros”.

O sábio artesão fez uma breve sinopse daquela história. A mulher era sua ex-namorada e tinha uma filha adolescente oriunda de outro relacionamento afetivo, que morava com ela desde a separação com o pai da moça. A relação entre mãe e filha era péssima, pois, por vício, a mãe sempre culpava a adolescente por todas as suas eventuais frustrações. Cobrava-lhe o tempo, o trabalho e o amor dedicado em sua educação, como se isso não lhe coubesse por pura responsabilidade amorosa e materna. Claro que o peso dessa carga emocional e psicológica atingiu o nível do insuportável para a jovem.  Na volta de uma viagem de passeio que a mulher fez com o sapateiro, coincidindo com o período de férias escolares que a menina passava todo o ano com o pai, recebeu a notícia de que a jovem moraria definitivamente na casa paterna. Pesou nessa escolha a paz necessária encontrada no novo lar, indispensável para desenvolver o seu potencial e viver a vida sem conflitos desnecessários. Como se não bastasse, na mesma época, também chegou ao fim o namoro entre a mãe e o Loureiro. Ela alegava que o convite para a viagem, feito pelo sapateiro, tinha sido angular para a escolha da filha, o que tornou o romance insustentável, vez que atribuía a ele a razão do que chamava de desastre.

“Pronto, a partir de então me tornei o perfeito algoz das suas insatisfações. Na cabeça dela virei seu devedor. Em vão. Como me recuso a aceitar a conta, ela reage com revolta”.

“Embora, por diversas vezes, antes da ruptura, eu tivesse conversado com ela sobre o seu comportamento equivocado diante da filha, onde, ao meu ver, havia cobranças descabidas. Mas os eternos credores têm, entre suas características, o hábito de não ouvir nada que esteja fora de sintonia com a ansiedade insensata de que a vida atenda a todos os seus desejos, sempre dentro do menor esforço possível. Nesta evidente impossibilidade, elegem seus devedores, atribuindo aos mesmos o encargo de resolver os problemas cujas soluções, na verdade, cabem aos próprios credores”, explicou o sapateiro.

“Claro que ninguém consegue ou suporta tal obrigação”, Loureiro fechou os olhos e passou a mão para alisar seus fartos cabelos brancos. Depois continuou: “Os tristes credores costumam ter uma espécie de livro-caixa virtual em que contabilizam todo e qualquer ato que entendam ter feito em prol do devedor. Qualquer coisa serve, o importante é que os absurdos créditos não tenham fim. Depois acrescentam juros emocionais. Assim, criam uma suposta dívida para justificar a cobrança que passam a executar. Declaram-se lesados na relação, como se o afeto, ou mesmo o favor, pudesse ser medido, calculado ou cobrado. A vitimização criada pode ser confortável ao credor em um primeiro momento, por estabelecer a desculpa que lhe afaga o ego e supostamente transfere a própria responsabilidade. Porém, na verdade, é um pântano lodoso que o deixa atolado, sem condições de prosseguir na inevitável viagem da vida”.

Tudo me parecia óbvio demais e, espantado, perguntei se o bom artesão já tinha conversado sobre isso com ela. “Muitas vezes”, ele disse resignado: “Ainda quando namorávamos tentei lhe ajudar e até mesmo anunciei a possibilidade de a filha acabar indo morar na casa do pai por não suportar uma dívida que simplesmente não existia. Por sua vez, a menina se esforçou bastante para que o ambiente no lar materno se harmonizasse e até mesmo que o hipotético débito fosse ‘pago’ ”, o sapateiro me mirou nos olhos, balançou a cabeça em negação e disse: “Ocorre que os tristes credores nunca dão quitação. Eles precisam que a dívida seja eterna, pois necessitam alimentar o próprio vício, até que aquele que é eleito devedor entende que precisa impor um limite. Então ocorre o corte e todo corte sangra”.

Comentei que era um absurdo a mãe atribuir qualquer culpa ao Loureiro pelo ocorrido. Ele riu com vontade e disse: “Eu sei. Ocorre que o triste credor não se importa com qualquer coerência ou lógica. A mente humana possui trilhas tortuosas e desconexas que iludem na tentativa de justificar uma conclusão que seja sempre agradável e conveniente ao ego. Nestes casos os argumentos usados sempre são incoerentes ou absurdos. Pouco importa”.

Eu quis saber por qual motivo ela tinha ido lhe visitar. Ele balançou a cabeça como quem diz ‘não tem jeito’ e explicou: “A solução mais fácil e cômoda para ela foi atribuir a mim a responsabilidade pela decisão da filha. Alega que se não tivesse aceitado o convite para viajar comigo a jovem ainda estaria morando com ela. A mãe se nega a buscar a origem das fraturas sentimentais acontecidas durante o tempo em que dividiu a vida sob o mesmo teto com a filha. Como se não bastasse, ainda acusa a filha de ingratidão, na contramão da sensatez de resgatar o que se perdeu”.

“O erro tem duas vertentes: pode se tornar uma ferida difícil de cicatrizar ou o ponto de partida para uma vida diferente e melhor. A escolha é sempre sua. Admitir erros é doloroso, mas indispensável para a cura. É preciso coragem para enfrentar o espelho e a dignidade de não permitir as distorções exigidas pelo o orgulho e a vaidade. Negar os benefícios do conflito é perder a oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre si mesmo, estágio fundamental no processo evolutivo, sem o qual nunca encontrará a tão sonhada paz”.

“Conheça a si próprio, peça desculpas com sinceridade, tenha a responsabilidade de reparar o que for possível, assuma o compromisso de uma nova postura e siga adiante. Assim caminhamos”. Bebericou mais um gole de café e definiu: “Só não fique parado se lamentando de tudo e todos. Recusar o esforço para crescer é negar nova oportunidade à plenitude do ser”.

“A arma predileta dos tristes credores é a chantagem emocional. Ele dirá que você é a causa da dor dele. Isto é um convite para um baile trevoso. Recuse veementemente. O mais importante, mesmo que exista erros, é entender a desnecessidade de algemas ou grades afetivas. Dívidas eternas é uma criação das sombras. A Luz exige evolução, para tanto, trabalha com o perdão, a responsabilidade e a liberdade”, explicou o bom artesão.

Fiquei curioso para saber como ele se protegia dos tristes credores ou, no caso específico, não se sentia atingido diante da enorme cobrança, vez que se mostrava tão sereno. O sábio sapateiro respondeu com sua voz mansa, que refletia o verdadeiro espírito do seu coração: “As pessoas só têm sobre nós o poder que concedemos a elas. Nunca permita que lhe furtem a preciosa paz”.

Deu uma pequena pausa para que eu refletisse sobre a profundidade da frase que acabara de proferir e continuou: “A dependência emocional é um triste vício. Não podemos permitir que ninguém nos faça prisioneiro de suas insatisfações e frustrações. Ninguém tem a obrigação de fazer o outro feliz. É um ônus insuportável. Na verdade, cada qual é responsável pela construção da própria felicidade, com a argamassa dos sentimentos puros e os tijolos das nobres virtudes. Então, encantado com a vida, abre as portas para que o mundo também se encante com a beleza que traz no coração”.

 

3 comments

Wanderley Urata fevereiro 24, 2016 at 10:34 am

“Nao podemos permitir que ninguem nos faca prisioneiro de suas insatisfacoes e infelicidades“ Otima frase para nos fazer refletir, um abraco amigo…

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José Cláudio Wandscheer março 1, 2016 at 8:49 pm

“As pessoas só têm sobre nós o poder que concedemos a elas”
Tenho procurado seguir esse conselho como um mantra para uma vida melhor. Obrigado por todos os textos produzidos. Eles me conectam contigo e comigo mesmo. Muito agradecido, mesmo. 🙂

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Allan P. Lucena abril 6, 2020 at 3:10 am

É muito bela a forma como se expressa nestes textos. Agradeço a oportunidade de navegar por sua página e pela oportunidade de aprender.
Gratidão e grande abraço acolhedor!

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