MANUSCRITOS II

O melhor mantra.

 

Eram os meus primeiros dias no mosteiro, quando nem pensava em me tornar um discípulo da Ordem. O convite era para que me hospedasse por curto período. Minha vida passava por momentos de grandes turbulências, eram problemas sobre problemas. Como se não bastassem, dúvidas existenciais me assolavam. Eu estava ali na procura da fórmula que me levasse à solução dos conflitos. A figura do Velho, como carinhosamente chamávamos o decano do mosteiro, era o que mais me chamava atenção, seja pelo seu jeito cativante ou pela visão desconcertante em relação à vida. Naquela manhã, ele fizera uma reflexão para todos os presentes sobre o poder transformador do amor. Suas palavras suscitaram muitos questionamentos em mim, porém não ouvi nada que me ajudasse de modo objetivo. Logo em seguida, o encontrei no refeitório tomando café. Aproveitei a oportunidade para relatar um recente conflito com um parente sobre questões de herança, fato gerador de uma escalada crescente de confusões em minha família. Falei que não sabia como pacificar a briga. O monge disse com a voz serena: “Entenda que cada qual só consegue viajar até a fronteira da própria consciência.  Perceber a sombra alheia é passo importante para iluminar a sua. No entanto, para transmutá-la será necessário que suas escolhas passem a ser diferentes e melhores do que foram até agora”. De pronto perguntei como deveria agir. O Velho arqueou os lábios em belo sorriso e falou: “Está ruim? Polvilhe com amor”.

Por um lado, achei interessante, por outro, enigmático.

Na manhã seguinte, o encontrei no jardim interno do mosteiro a podar as roseiras. Perguntei se poderíamos conversar um pouco. Ele assentiu com a cabeça e sorriso nos olhos. Contei de como o término de um namoro antigo ainda me atormentava. O monge franziu as sobrancelhas e falou: “Agradeça pela saudade, pois ela só existe onde há amor. Fora disto resta apenas o vazio. O mel da vida está em se encantar com o voo, não em construir jaulas”. Aflito, confessei que não sabia como fazer para aliviar meu sofrimento. O Velho disse apenas: “Está ruim? Polvilhe com amor”.

Por um lado, achei poético; por outro, pouco prático.

Naquela noite, surgiu uma nova oportunidade de ficar a sós com o Velho, logo após o jantar. Reclamei da minha insatisfação quanto à atividade profissional que exercia. Falei da dificuldade cada vez maior em trabalhar com o que não gostava. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e falou: “Todos temos um dom que nos diferencia. É o uso do seu dom que dá asas aos seus sonhos, seja através de um ofício ou arte. O exercício do dom, por mais simples que seja, transcende ao mundano e nos conecta ao sagrado. O dom é o talento pessoal ligado ao dharma, ao seu propósito de vida. Abandonar o dom enferruja a essência do ser” e antes que eu fizesse qualquer comentário, o Velho finalizou: “Ficou ruim? Polvilhe com amor”.

Por um lado, achei elegante; por outro, patético.

Irritadíssimo, falei que estava perdendo o meu tempo ali dentro enquanto a minha vida virava um inferno lá fora. Agradeci com sarcasmo e avisei que partiria imediatamente. O Velho apenas cerrou as pálpebras de modo suave, como fazia toda vez que ouvia algo lamentável. Não disse palavra.

Arrumei minhas coisas e saí. No pátio externo do mosteiro, utilizado como estacionamento pelos visitantes, um homem franzino estava à beira de um ataque histérico pelo fato de um outro carro estar parado fora da faixa, o que dificultava bastante a sua manobra, sem, no entanto, impossibilitá-la. Era o meu carro. Ao perceber, o pequeno homem se dirigiu a mim de maneira agressiva, me acusando de todos os males do mundo. Também irritado, fui rapidamente levado à fúria e cogitei seriamente em silenciá-lo com um soco, o que não seria difícil face a desproporção de nossos tamanhos. Neste exato instante, aos gritos, ele disse que não suportava ficar nem mais um minuto naquele lugar. Tinha vindo em busca de ajuda e apenas ouvira um bocado de asneiras. Aquelas palavras travaram o meu punho e eu o percebi como um perfeito espelho. O descontrole e a visão enevoada eram sensações parecidas com as minhas. “Polvilhe com um pouco de amor”, ouvi a voz suave do monge soprando em meu coração. Naquele instante me ocorreu que toda a raiva daquele homem, embora dirigida a mim, não eram para mim. Revelava apenas a sua agonia diante da incapacidade em solucionar os próprios problemas. Mortes? Falências? Doenças? Separações? Frustrações? Eu não sabia o motivo, mas percebia, pela primeira vez, de maneira cristalina, o sofrimento e a confusão nos olhos de alguém. Emoções densas que, misturadas, explodiam em ódio e precisavam ser transferidas para alguém. Me vi espelhado naquele homem desesperado e entendi que eu não queria ser assim. Naquele instante, aprendi a importância do outro na minha vida e, também, o significado e a beleza do amor, ali se manifestando através da compaixão. Senti compaixão por ele e por mim. Tudo mudou dentro de mim em frações de segundos.

Pedi desculpas, o que de pouco adiantou. O frágil homem continuou atirando impropérios e absurdas acusações. Mas tudo aquilo tinha perdido o poder de me ferir ou me irritar. O amor me protegia. Dele e de mim mesmo, vez que a ofensa só nos atinge se nos permitimos estar na mesma frequência vibracional do outro. Todavia, algo tinha mudado. Toda a minha ira acabara de se transformar em compreensão e paciência. Eu estava em um lugar onde as ofensas não conseguiam chegar. Entendi que o amor funciona como um escudo. Mais ainda, começava a perceber a fantástica força transformadora do amor. Logo que eu manobrei o carro, ele partiu. Não sem antes abrir o vidro e gritar a última ofensa. Sorri e agradeci a ele pela maravilhosa lição.

Girei nos calcanhares e retornei ao mosteiro.

Fui informado que o Velho lia na biblioteca. Subi as escadas aos saltos. Ele estava só e me recebeu com um sorriso que jamais esquecerei. Sentei-me ao seu lado, relatei o fato ocorrido no pátio. Confessei que estava encantado ao perceber que o Universo sempre conspira a nosso favor. O monge deu uma risada gostosa e emendou: “Sim, é verdade. O Universo insiste em nos ajudar, pena que nós teimamos em atrapalhar. Até mesmo quando os planos dão errado, não tenha dúvida, é a vida nos corrigindo a rota, adequando os desejos do ego às necessidades da alma”.

Roguei para que aprofundasse mais um pouco sobre o poder transformador do amor. O bom monge falou com a sua enorme paciência: “Estamos neste planeta unicamente para evoluir. Nada mais. É uma viagem infinita composta de inúmeros trechos. São os ciclos evolutivos. Cada um deles possui quatro momentos distintos: Aprender, Transmutar, Compartilhar e Seguir. Assim seguimos, estação a estação, a jornada rumo às Terras Altas. Evoluir é expandir o nível de consciência. Isto apenas é possível quando, concomitantemente, ampliamos a capacidade do coração. A sabedoria precisa de doses cavalares de amor para atingir o seu real valor e melhor sentido. Somente assim alavancamos a nossa evolução. Sabedoria sem amor apenas agiganta as sombras que nos habitam. Sem amor a mais fina sabedoria é incapaz de descortinar o véu que encobre a essência da vida. O amor é o caminho da luz e o perfeito destino. Nada fora dele nos trará alegria ou paz”.

Ficamos sem dizer palavra por um tempo que não sei precisar. Comecei a refletir sobre todos os conflitos que me furtavam a tranquilidade e me levaram até ali. Olhando pelas lentes do amor, apresentavam soluções simples. Ao mesmo tempo, desconcertantes, ousadas e fora do meu padrão de comportamento até aquele dia. Os singelos conselhos do Velho, absurdos até o momento, começavam a se tornar absolutamente geniais. Na medida que avançava com as minhas reflexões, tudo ganhava cores que eu desconhecia, oferecendo escolhas impensadas. Pura Luz. Eu ria e chorava ao mesmo.

Falei para o monge que tudo parecia se resolver como que por mágica. Ele sorriu e disse: “Pela primeira vez você está se dando conta de viver um milagre. Milagres nada mais são do que transformações movidas pelo infinito poder do amor. Eles são muito comuns, pena que a maioria das pessoas não consegue perceber por sempre esperar pelas situações cinematográficas”. Deu uma pequena pausa e concluiu: “Todo o encantamento deste momento se explica pelo início de encerramento de um ciclo. Hoje você aprendeu uma valiosa lição através de uma situação corriqueira e aparentemente comum que já deve ter acontecido inúmeras vezes na sua vida, mas você não conseguia perceber a oportunidade se apresentando. A lição foi aprendida. Agora você passará um tempo transmutando ideias, conceitos e atitudes. Enfim, se transformando. Depois irá compartilhar com toda a gente esse seu novo jeito de ser. O amor e a sabedoria não podem descansar na teoria, precisam que você os vivencie nas menores questões do dia a dia. Então, estará pronto para seguir”.

Tornamos a ficar um bom tempo sem dizer palavra, até que o Velho quebrou o silêncio: “Vou lhe ensinar um poderoso mantra”, falou. Ele me observou por instantes. Seus olhos pareciam já ter visto de tudo um pouco nesta vida. Depois sorriu, piscou um dos olhos, com jeito maroto, como sempre fazia quando contava um segredo e disse: “Está ruim? Polvilhe com amor”. Rimos.

Então, finalizou: “O amor é o sal da Terra, o tempero da vida. Sem ele tudo é insosso e intragável”.

11 comments

M M Schweitzer abril 8, 2016 at 3:33 pm

Outro texto DIVINO 🙂

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Vanessa abril 8, 2016 at 4:09 pm

Obrigada!

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Lhais Aquino abril 8, 2016 at 4:23 pm

Um dos mais lindos e significativos pra mim…

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Orontue abril 8, 2016 at 7:25 pm

??…

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karine abril 9, 2016 at 7:35 am

Uma grata surpresa encontrar este site!! A partir de agora devo acompanha-lo não ccomo um mero transuente, preciso captar cada palavra e como um transgressor pretento ser. Obrigada por enaltecer a minha alma

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Fatima abril 10, 2016 at 10:30 am

Gratidão _/|\_

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Christina Mariz de Lyra Caravello abril 10, 2016 at 9:01 pm

Dava para ouvir o silêncio enquanto caminhavam pelo corredor comprido, duas irmãs,indo ao encontro da Madre Superiora que as havia chamado. Duas crianças de 11 e 12 anos…Era o terceiro ano de internato.. Uma vez por mês, todas as alunas se reuniam num salão e a Madre Superiora fazia uma preleção sobre o valor de um bom estudo, dava algumas notícias importantes e, em seguida, nomeava as alunas que, pelo comportamento e aplicação, haviam feito jus às medalhas correspondentes e ao Quadro de Honra. Sempre chamava as irmãs, mandando que dessem um passo à frente… Morriam de vergonha com todos os olhares voltados para elas, mas não tinham como evitar…ela elogiava o senso de responsabilidade, e os desempenhos das duas… No final do corredor, a Senhora Superiora aguardava com a veste e a touca negra se destacando contra o fundo branco da parede. Estavam ansiosas. O que poderia ser a menos de dois meses do final do ano?…………….Sem nenhum preâmbulo, foi falando: a mãe de vocês está atrasada no pagamento das mensalidades e, como devem saber, quem não está quite com o Colégio, não pode fazer as provas finais.( Mudas, as duas se entreolharam) Continuando, ela disse: mas, se vocês me pedirem, eu deixo vocês fazerem… Uma das irmãs ficou vermelha, e não disse nenhuma palavra…. A outra ficou olhando fixamente para a Superiora e não disse nenhuma palavra…Ela sustentou o olhar da pequena e falou: Como você é prepotente ! Foram dispensadas, ela virou as costas e seguiu pelo corredor…..O caso foi resolvido porque fizeram as provas, passaram de ano e ainda ficaram internas por mais dois…..Mas doeu em seus pequenos corações… e deixou marcas e sequelas…. A partir desse fato , procuravam nunca dever um centavo a quem quer que fosse, mas também não permitiam que ninguém as devesse……Já casada a um certo tempo e com o marido doente sem poder trabalhar direito, a mais nova foi lesada em dinheiro que havia aplicado com os empregadores e que era parte da renda necessária para suas despesas. Teve que ouvir deles que deveria ficar muito agradecida por ainda manterem o marido em seu trabalho com plano de saúde pago, apesar de doente e pouco produzir, e que ainda faziam muitas coisas por ela e pelos filhos que ela desconhecia, mas que faziam e toleravam isso tudo por conta de uma promessa feita ao avô deles (eram quatro irmãos) que era amigo da família desde que haviam chegado de Portugal, e sempre se ajudavam uns aos outros , na adaptação na nova terra…. O tempo foi passando, o marido faleceu, os filhos foram crescendo e, por uma ironia do destino, ficaram amigos dos filhos dos antigos empregadores….Tempos depois, eles começaram a ter dificuldades em seus negócios, tentaram resolver por meios não convencionais e chegaram a um ponto que perderam sua empresa, sofreram processos e penalizações judiciais e todos os credores se credenciaram para receber as importâncias a que se julgavam com direito. Inclusive ela. Depois de um longo tempo, começaram a receber não a dívida toda, mas a uma parte, porque não havia dinheiro suficiente. E um dos quatro foi procurá-la para pedir dinheiro….depois a mulher dele também …e ela emprestou porque se colocou no lugar deles e dos filhos deles, por saber das dificuldades e das humilhações que passavam por conta de todo o escândalo do processo judicial….ela olhava nos olhos deles e sabiam o que estavam sentindo porque ela, desde cedo, menina ainda, sentiu a mesma dor ….e anos depois voltou a sentir , por intermédio da prepotência deles…. Mas a vida havia sido generosa com ela e com sua família …seus filhos estudaram, se formaram, mas o mais importante, nunca deixaram que o ocorrido corrompesse a amizade que tinham com os filhos deles… Mas a vida não foi generosa com eles. Perderam tudo. Ficaram, cada qual com sua casa própria, que não puderam vender, mas alugaram para ter alguma renda…com a idade, ficaram com limitações físicas, mas os filhos tentam ajudar de alguma forma … Apesar de tudo, ela soube transmitir para os filhos o que de mais importante existe na vida, o que faz tudo valer a pena: “a essência da vida está adormecida em cada um de nós. Não a acharemos em nenhum outro lugar. Este encontro muda o seu jeito de caminhar e traz consigo um novo caminho”. ………….. “O amor é o sal da Terra, o tempero da vida. Sem ele tudo é insosso e intragável”.

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Miquelyna abril 17, 2016 at 1:21 am

Nao parei de ler um so texto desde que o encontrei. Indugencia eh crucial.!!

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Nazaré Dimaria abril 18, 2016 at 8:43 pm

texto iluminado.. Sou grata!

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Greziele Resende julho 17, 2016 at 12:55 pm

Muito bom o texto!!!!

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Czochra setembro 11, 2016 at 7:42 pm

Minha alma tem sede desta sabedoria….quero ir para o Mosteiro ?
Onde fica ?
Como estas palavras me fazem refletir ….estava lendo e me vendo dentro deste Mosteiro.
Gratidão …pelos ensinamentos.

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