MANUSCRITOS II

Abraçando as sombras

 

Todos os discípulos da Ordem tinham sido avisados que um de nós, em breve, seria consagrado monge em cerimônia permitida apenas aos iniciados. Não tive dúvidas de que eu seria o escolhido. Embora não fosse o aluno mais antigo, era o mais próximo do Velho, como carinhosamente chamávamos o decano do mosteiro. A ansiedade tomou conta de mim, me senti orgulhoso e fiquei algumas noites em claro imaginando como seria o ritual de passagem, tão comentado entre paredes, de discípulo para monge. Até que veio a notícia de que outro aprendiz era quem seria consagrado. O que parecia dia se tornou noite. A brisa agradável, que me acariciava o ego, se tornou uma violenta tempestade, capaz de varrer os meus melhores sentimentos para um lugar tão distante que tive a sensação de nunca mais encontrá-los.

O ciúme me convenceu de que aquela decisão era injusta.  A inveja chegou para me avisar que a vida era assim, injusta por natureza. Para piorar, o escolhido para se tornar monge tinha sido o aprendiz com quem eu mais debatia e combatia nas aulas de filosofia e de metafísica. A mágoa me cobriu com um espesso véu para segredar que bons sentimentos são frutos da árvore da ingenuidade: um carneiro não sobrevive no meio de lobos. Sim, eu era a perfeita vítima.

Passei alguns dias ponderando sobre a possibilidade de me desligar da Ordem. Estava convencido da perda de tempo em insistir em um sonho que não encontrava respaldo nem entre aqueles em quem eu mais confiava. Amuado pelos cantos, avaliava se deveria fazer um discurso para desmascarar a farsa ou se saía em silêncio, sem aviso, em velado protesto. Até que ao atravessar o jardim interno do mosteiro, vi o Velho cuidando das flores. Contornei na tentativa de evitá-lo. Não adiantou. Ao perceber a minha presença, sem se virar, pediu que eu me aproximasse. Guardou as pequenas ferramentas no bolso da túnica e pediu para que eu o acompanhasse até a sua pequena sala de trabalho. A sós, me serviu uma xícara de chá e disse: “Yoskhaz, abra o seu coração”.

Respondi, secamente, que estava bem. Não, eu não daria o meu braço a torcer. Minha indignação seria silenciosa e, se ele tivesse alguma consideração por mim, que decifrasse as minhas emoções. Ele me olhou com doçura e disse: “O ciúme, a inveja e o ódio nunca serão bons conselheiros”. Argumentei que ele estava enganado, pois tais sentimentos não faziam parte da minha personalidade e, há muito, tinham sido superados. O Velho, manteve a paciência, e falou: “Pelas nossas entranhas correm todos os sentimentos. Os melhores e os piores. Faz parte da natureza humana, não existe exceção. No entanto, o que fazemos com eles define quem somos e o destino próximo”.

Insisti que ele estava errado quanto a mim, pois tais sombras não me habitavam; embora, eu as reconhecesse nos outros e, confessei, muito me incomodavam. O monge respondeu: “Incomodam pelo simples fato de identificá-las, inconscientemente, em si. Quando passam para o estágio do consciente a postura passa a ser de humildade e compaixão para com todos”.

Lamentei o fato de ele não ter me conhecido melhor, apesar do longo período de convivência. O Velho respondeu sem alterar a tranquilidade que lhe era característica: “Percebe que a sua reação demonstra o quanto você desconhece de si mesmo? O processo de autoconhecimento é o primeiro degrau para alcançar a harmonia e o equilíbrio do ser. O primeiro portal do Caminho é o encontro consigo mesmo. Quando já conseguimos nos conhecer, de verdade, nos tornamos íntimos de nossas sombras. Esta cumplicidade serve, não para alimentá-las, mas ao contrário, para identificar a manifestação delas cada vez mais cedo, para que seja possível iluminá-las. Assim, face a rápida intervenção, aos poucos, as sombras perderão a força de influenciar as nossas escolhas”.

“Fingir que as sombras não nos habitam é muito perigoso. Ao negar as sombras, você concede a elas total permissão para se movimentar e se apoderar do seu ego, agigantando-o, em rota equivocada quanto a verdade. Você será dominado sem perceber, de maneira sorrateira, pois o melhor truque delas é convencer que existem apenas nos outros. Elas iludem: nos fazem confundir amor com ciúme; justiça com vingança; direito com egoísmo; humildade com humilhação; sucesso com ganância; vitória com dominação. Pensar que estamos imunes às suas artimanhas, fora do alcance de suas garras? Ledo engano. Então, invariavelmente, somos levados às escolhas erradas e adiamos o processo evolutivo. Por outro lado, ao perceber tudo isto, iniciamos a grande batalha da vida: iluminar as próprias sombras para, depois, transmutá-las”.

Eu quis saber como funcionava esse processo de iluminar e transmutar as sombras. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e explicou: “Digamos que alguém tenha recebido um prêmio que você imaginou ser o merecedor. A primeira reação é se sentir injustiçado e ficar estagnado em lamúrias e reclamações. O andarilho que já iniciou o processo de autoconhecimento faz uma análise sincera, isenta de emoções, para avaliar se, de fato, o seu trabalho era superior ao premiado. Se não era, entende em quais atributos precisa melhorar para que em outro momento lhe seja oferecido o reconhecimento e, mesmo que este não venha, ele aprendeu e avançou. Assim, torna-se um sujeito melhor. Este é o grande prêmio”. Deu uma pausa e prosseguiu: “Por outro lado, se tiver convicção de que o seu trabalho era o merecedor, simplesmente atribui o erro às imperfeições humanas de julgamento e no seu íntimo segue em paz consigo mesmo, pois o andarilho não precisa dos aplausos do mundo para se sentir pleno”.

Falei que o exemplo era muito parecido com o meu caso e, por isto, estava contaminado. O Velho foi paciente: “Imagine a situação em que uma namorada tenha atitudes que provoque ciúme em você. Aconselhado pelas sombras, a reação mais primitiva é a tentativa de controlar, reprimir ou modificar a moça para que ela tenha um comportamento dento dos parâmetros que você ache adequado. Então, surgem os conflitos e o sofrimento, pois ninguém tem o poder ou o direito de modificar ninguém. Insistir nesse comportamento é alimentar as sombras e a dor. Ao identificar o ciúme, a primeira atitude do andarilho é mergulhar em si para analisar se o que sente está amplificado por situações traumáticas do passado, feridas abertas de outras relações que sangram silenciosamente refletindo em reações desproporcionais e inadequadas. Ou mesmo por mera imaturidade. Percebe que o que lhe faz sofrer está muito mais dentro do que fora dele. Então, é hora de iniciar um processo de cura para que possa ter uma vida mais serena e justa. Por outro lado, se o comportamento da namorada estiver na contramão do convívio saudável, o andarilho sabe que as transformações apenas ocorrem pela ampliação do nível de consciência, não por vontade alheia. Assim, deseja, de coração, toda a felicidade do mundo para ela e segue em frente. Livre e em paz”.

O Velho deu uma pausa e prosseguiu: “Seria possível inúmeros outros exemplos. Embora expostos de maneira simples, percebe que em ambos casos o andarilho não alimentou nem permitiu que as sombras o manipulassem. Ao contrário, as sombras serviram de indicador do aperfeiçoamento que lhe falta ou, por outro lado, permitiram que oferecesse o melhor se si nas lições já aprendidas”.

“Nunca esqueça: o que nos define é tão somente a maneira como reagimos diante dos conflitos”.

Tornou a pausar e concluiu: “Acredite, sempre temos escolhas entre o sofrimento e a paz; sempre podemos fazer diferente e melhor”.

Fui tomado por uma raiva incontrolável. Falei que sabia quem eu era, que ninguém me conhecia melhor do que eu a mim mesmo. Despejei todas as minhas mágoas pelo fato de não ter sido o escolhido para a próxima iniciação da Ordem. Sustentei a tese da injustiça. Falei por minutos a fio. Depois repeti as mesmas lamentações várias vezes. Falar me ajudava a exorcizar o meu sofrimento, pois, na medida que eu ouvia e ouvia as minhas próprias palavras, começava a entender que elas revelavam para mim mesmo quem eu era de verdade. Eram palavras pesadas como os sentimentos que as revestia. Aos poucos, a minha consciência dizia que não era aquilo que eu desejava para mim. A minha alma soprava que aquele discurso era incoerente com a minha busca. Eu precisava que florescesse a verdade em mim.

Não foi fácil admitir. O Velho me escutava em profundo silêncio e seus olhos transbordavam uma involuntária misericórdia, o que, no início, aumentou ainda mais o meu ódio, fazendo com que eu subisse o volume da voz. Ele se manteve impassível. Na medida em que eu falava os desatinos que vinham à mente, fui me dando conta que toda aquela piedade no olhar do monge não era com o intuito de me humilhar ou fazer com que eu me sentisse menor. Era amor. Um amor puro e incondicional por me ver sofrer, por desejar o meu bem, por entender que eu sentia. O seu olhar era humilde, me contava que ele já tinha passado por aquela situação.

Naquele instante, percebi que não precisava ter vergonha ou culpa pelo que sentia. Todos, cedo ou tarde, atravessam essa porta. Percebi que eu dificultava a cura na medida que escondia a minha dor. Entendi, também, o quanto ainda estava distante de onde pensava já ter chegado. Aquela catarse revelara a minha alma nua diante do perfeito espelho: estava rasgada a fantasia do ego. A máscara que mostrava um personagem ao mundo, uma pessoa que eu nunca fui, com virtudes que ainda não dominava, tinha caído. Tudo aquilo não se sustentava mais. Mostrar à sociedade uma força, um poder e capacidades que não faziam parte de mim, apenas demonstravam toda a minha fraqueza e medo. Estava na hora de construir quem eu sempre desejei ser, sem ilusões, longe da farsa que eu mesmo montara por toda uma vida para enganar a mim mesmo. Chorei até as lágrimas secarem.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para admitir que todos no mosteiro tinham razão: eu ainda não estava pronto para o próximo passo. A minha reação mostrava isto. Falei também que me empenharia ao máximo, não com o intuito de me tornar um monge, mas para construir, de fato, quem eu queria ser. Tudo é causa e consequência.

O Velho sorriu e revelou: “Neste momento, você acaba de colocar o pé no Caminho. Seja bem-vindo”!

Ele me deu um forte abraço. Agradeci ao Velho por me fazer entender o momento pelo qual passava. Ele ofereceu um lindo sorriso e falou: “Não agradeça a mim, mas às sombras. Ao invés de brigar com elas, abrace-as. Nunca as perca de vista para que possam ser vigiadas e educadas. Elas são o contraponto, a sinalização dos obstáculos a serem superados. São a exata medida do que nos falta para a integralidade, a liberdade, a plenitude e a paz”.

 

8 comments

M M Schweitzer abril 29, 2016 at 5:44 pm

Eu queria dar um abraco ao escritor de tao belo e iluminado conto de sabedoria, que com sua clareza de verdades e informação desnuda a escuridão que todos carregamos dentro de nos. Cada conto e um pedaço de luz, eles todos num livro, foram uma enciclopédia de humildade, bondade e generosidade. Obrigado meu querido, obrigado por compartilhar a sua paz com todos nos.

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L pereira abril 29, 2016 at 7:50 pm

Obrigada Yoskhaz…em muitos momentos de raiva, ciúme, inveja, ambição e sombras, eu sentei peguei seus textos e reli.Muitas vezes eu reconheci que as sombras estavam me abraçando, é difícil reconhecer e mais complexo ainda lidar com isso dentro de nós. Mas eu estou com muito esforço tentando e seus textos são bússola para o meu caminho.Muito, mas muito obrigada mesmo.

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Christina Mariz de Lyra Caravello abril 30, 2016 at 3:08 am

Em nossa caminhada pela vida, desde crianças somos apresentadas às sombras travestidas de inveja, ciúme, vingança, egoismo, prepotência, orgulho e tantas outras mais. Só que não damos a devida importância a má influência que esses sentimentos exercem em nosso crescimento. Muitas vezes achamos até natural porque sentimos que também temos o direito de extravasar esses sentimentos quando as situações se apresentam.

“Fingir que as sombras não nos habitam é muito perigoso. Ao negar as sombras, você concede a elas total permissão para se movimentar e se apoderar do seu ego, agigantando-o, em rota equivocada quanto a verdade, a justiça e o Caminho”

Quando se tem a sorte de encontrar alguém que, de alguma forma, nos faz reconhecer as sombras que nos habitam, conseguimos iluminar nosso caminho e prosseguir convivendo com elas, vigiando-as, não as perdendo de vista.

O mais difícil e o mais bonito é quando se tem a humildade de reconhecer que ´se estava usando a máscara de um personagem inventado.
E que as sombras são necessárias.

“Elas são o contraponto, os obstáculos a serem superados. São a exata medida do que nos falta para a plenitude e a paz”.

Tudo na vida tem sua razão de ser. Tudo é necessário para nosso aperfeiçoamento. O bem, o mal. A sombra, a luz. O certo, o errado. É a grande sabedoria da criação divina. Tudo nos é mostrado. As escolhas são nossas. O livre arbítrio é nosso. E nem sempre escolhemos o que é certo. Nossa caminhada é cheia de erros e acertos, de cair e levantar, de seguir atalhos que não nos levam a lugar nenhum até conseguirmos encontrar a direção certa para prosseguirmos .

E nesse instante, então, colocamos o pé no Caminho.

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Miquelyna abril 30, 2016 at 11:20 am

Velho monge e Yoshkaz, ficção ou realidade? Bem, seus leitores não sabem, mas tem por vocês grande admiração por esse companheirismo que tanto nos respingam luz a cada leitura. Gratidão!!

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Cecília Valente junho 1, 2016 at 7:09 pm

Agradecida sou, quando do nada surge texto da qual ilumina minha meus sentidos.
Gratidão

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Alexandre julho 2, 2016 at 6:55 pm

Gratidao!

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Alzira julho 28, 2016 at 8:31 am

Gratidão pelo belo texto

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fernanda neves da Silva agosto 18, 2016 at 11:45 pm

Quero receber esses áudios todos os dias.

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