MANUSCRITOS II

Eu e o outro

 

O garçom abriu a garrafa e gentilmente completou as nossas taças. Eu estava em um daqueles dias em que sentimos vontade de conversar sobre a vida e ouvir a opinião de quem respeitamos. Um tio muito querido, que passara recentemente por situações difíceis e que não estava sabendo equacionar o seu lado emocional, me trazia preocupações. Aproveitei que tinha ido à pequena e secular cidade situada no sopé da montanha que abriga o mosteiro e convidei o Loureiro, o elegante sapateiro, amante dos vinhos e dos livros, para uma conversa. Os tintos e os de filosofia eram as suas predileções. Remendar o couro era o seu ofício; costurar a vida, a sua arte. A taberna estava vazia e silenciosa, bem ao fundo podia-se ouvir uma rádio que tocava jazz, nada que nos fizesse aumentar o volume baixo da voz. Relatei ao bom artesão os fatos que se sucederam com esse tio, de quem eu muito gostava e que fora bem próximo de mim na infância e na adolescência. Ele perdera o único filho em um acidente e, em seguida e em razão disto, o seu casamento entrara em crise, culminando no divórcio. Eu tinha estado com ele e o encontrara bastante depressivo, com a clara expectativa de que eu tirasse férias das minhas atividades profissionais e largasse o meu serviço na Ordem para ir ampará-lo. Se por um lado eu sentia vontade de ajudar, por outro não queria modificar a minha vida a tal ponto. Enfim, eu estava dividido.

Loureiro bebeu um gole de vinho e soltou um suspiro de aprovação. Era uma boa safra. Depois me mirou nos olhos e falou sobre o meu tio: “Quando não sabemos nos relacionar com as próprias emoções a razão costuma se perder na floresta escura do desespero. A falta de maturidade em enfrentar os problemas que se apresentam, apenas revelam o despreparo daquele espírito em aprender as lições que lhe cabem”. Questionei quais os aprendizados poderiam caber nas situações que o meu tio vivenciava. O sapateiro respondeu com tranquilidade: “Não faço a mínima ideia. Eu estaria sendo leviano se pretendesse apontar as lições alheias no Caminho ou arrogante ao tentar elencar as soluções objetivas do mundo. Somente sei que conflitos surgem para alavancar a nossa evolução. É como os mestres se disfarçam para oferecer os valiosos ensinamentos depois que nos recusamos em aprendê-los de maneira mais suave. É o universo, em profundo gesto de amor, revelando que não desistirá de nenhum de nós”.

Falei que vinha rezando para que ele tivesse a devida ajuda para enfrentar o momento tão complicado. O artesão disse: “A oração é muito valiosa e, saiba, nunca faltará ajuda das esferas invisíveis. Nunca. Apenas não esqueça que ela não virá na medida dos desejos, mas das justas necessidades. Assim, como não farão a parte que cabe ao indivíduo. É exatamente esta parte que trará a transformação do olhar e do viver, permitindo o devido aprendizado, o necessário fortalecimento e, por consequência, que ele atinja, aos poucos, o equilíbrio indispensável à paz”.

Reiterei que eu tinha dúvidas quanto a que comportamento adotar. Por um lado, o meu tio se afundava em uma tristeza cada vez mais profunda. Por outro, eu queria viver a vida que havia escolhido para mim. Eu amava o meu tio, mas também amava os meus sonhos. Cuidar dele, ao menos como ele desejava, significava abdicar de uma parte importante de mim mesmo. Falei que entendia que eu teria que fazer uma escolha. Loureiro franziu as sobrancelhas e disse com seriedade: “Sempre temos que fazer escolhas, afinal esta é a única maneira de aperfeiçoarmos o espírito. Nossas escolhas nos definem e o convívio social é onde residem as grandes provas. Até aonde devo ir para atender o outro e qual o ponto em que devo parar para cuidar de mim é uma questão que sempre trouxe questionamentos e conflitos emocionais”. Bebericou mais um gole de vinho e acrescentou: “No final dos anos 1960, Fritz Perls, um psiquiatra alemão, pioneiro de uma terapia denominada Gestalt, cunhou a seguinte regra comportamental: ‘Eu sou eu, você é você. Eu faço as minhas coisas e você faz as suas coisas. Não estou neste mundo para viver de acordo com as suas expectativas. E nem você está para viver de acordo com as minhas. Se por acaso entrarmos em sintonia, será lindo. Caso contrário, não há o que fazer’”.

De repente tudo pareceu clarear na minha mente. Perguntei se o sapateiro acreditava ser válida aquela regra. Ele respondeu: “Claro”. Eu abri um enorme sorriso e falei que agora a vida se tornava mais simples. Levantei a taça e brindei dizendo que cada qual aprendesse a cuidar de si. Bebemos. Em seguida, Loureiro disse: “Aí mora o problema”. Perguntei do que ele falava, pois tinha achado genial e esclarecedor o ensinamento da Gestalt. O artesão explicou: “De fato é uma excelente lição e nos ajuda na tomada de decisões. No entanto, a vida não é cartesiana, de tamanha racionalidade que nos permita descartar os sentimentos. Se o que nos define são as nossas escolhas, o que nos aperfeiçoa é a dose de amor e sabedoria embutidas nelas. Equilibrar o cuidado que cada um tem que ter consigo mesmo e o carinho necessário ao outro é a perfeita obra de arte cuja a matéria-prima é tão somente a própria vida. É o que diferencia aqueles que vagueiam em busca de brilho daqueles que caminham rumo à luz”.

“Imagine a sua vida como uma enorme pedra de granito. O amor e a sabedoria são o martelo e o formão. Transformar a rocha disforme em uma bela escultura é a arte maior que pode existir”.

Desanimado, repousei a taça na mesa. Tudo tornara a complicar. Perguntei, de novo, se acreditava ou não na regra do terapeuta alemão. Loureiro arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Sim, já te falei que é uma sólida base para se posicionar quanto às relações pessoais. No entanto, deve ser usada com sensibilidade para que não forje o efeito contrário”. Piscou um olho e disse com jeito gaiato: “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Pedi para ele explicar melhor e o sapateiro não se fez de rogado: “A essência, por ser mais importante do que a forma, pode desconstruí-la”. Protestei. Eu agora entendia menos ainda.

O bom artesão se esforçou para ser didático: “Todas as coisas boas podem ter um mau uso. Eis a premissa básica nos relacionamentos: ninguém é responsável pela felicidade de ninguém. Cada qual deve aprender a construir a paz e a encontrar a alegria dentro de si mesmo, pois a plenitude não está em nenhum outro lugar. Isto nos torna absolutamente independentes”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Porém, é impossível desfrutar do mel da vida sem o compartilhar, pois o outro é elemento fundamental na medida em que trará as lições necessárias ao processo evolutivo, em constante troca de conhecimento e afeto. É no trato dos relacionamentos, na maneira como reagimos ao que nos fazem, que entendemos onde estamos e o que nos falta alcançar. Porém, para seguir em frente, temos que compartilhar o que possuímos de melhor: sentimentos puros e sabedoria despretensiosa, verdadeiramente humilde. As nossas melhores virtudes. Todo o resto é efêmero. Sem o outro não podemos exercitar o que temos de melhor; logo, não conseguiremos evoluir. Sem o outro não conseguiremos sair do lugar. Isto nos torna necessariamente solidários”.

Independente e solidário, ao mesmo tempo. Esta á a complexidade e a maravilha da vida. Ser ou não ser, lembrei do célebre bardo inglês. O artesão concordou: “Esta é a questão; afinar a alma no diapasão do universo é a resposta. Se por um lado abraçarmos a regra da Gestalt de modo indiscriminado, afundaremos em nefasto egoísmo. Por outro, se nos dedicarmos a atender somente as expectativas alheias, restaremos aprisionados em terrível relação de dependência afetiva”.

Falei que agora entendia menos ainda. O sapateiro explicou: “O andarilho não deve se recusar a atender quem lhe pede ajuda no Caminho. No entanto, não deve se desviar da rota, assim como o auxílio não pode ir além da exata necessidade do outro. Caso contrário, não o estará ajudando, mas enfraquecendo. É como um filho que diz para mãe não saber como fazer o dever da escola. Ela pode dizer que o problema é dele, pode fazer o dever para o menino ou pode ensiná-lo a fazer. São três escolhas possíveis. Na primeira, o filho pode se esforçar para cumprir com a sua obrigação em belo exemplo de superação, mas pode, também, tomar desgosto pelos estudos em consequência da sensação de abandono. Em qualquer das hipóteses restará uma lição de egoísmo. Na segunda opção, a mãe estará alimentando as expectativas do menino, que ganhará mais tempo para brincar, se sentirá protegido e amado, mas se acostumará ao menor esforço para evoluir. Restará um fraco. Caso a mãe escolha a terceira via, ensinará ao filho que todos, em algum momento, precisam de ajuda e o auxílio deve existir no limite exato de cada necessidade para que permita a cada qual as próprias asas, ou não será possível ir a lugar nenhum. Aqui restará uma semente de amor para germinar um forte. Deu uma pausa e concluiu: “É o caminho do meio a que Buda se referia”.

“A caridade, a compaixão e a misericórdia são indispensáveis a cada um e a todos. Da mesma maneira, para que uma boa virtude não tenha mau uso, não se pode permitir que o necessitado, após o atendimento da fase emergencial, abdique da determinação e coragem para superar por si mesmo os inevitáveis obstáculos do processo evolutivo. É a parte que cabe a ele. Ou o ciclo da ajuda não se completará”.

Falei que começava a entender as fronteiras tênues dos relacionamentos. O elegante artesão acrescentou: “Oferecer o melhor é a regra de ouro, sempre no limite da sua capacidade, entendimento e vontade. Atento para que o auxílio não descambe em dependência, na qual, algumas vezes, as boas ações se perdem. A necessidade do outro em reagir positivamente ao problema, em fazer a parte que lhe cabe, deve sempre ser exigida na esfera da sensibilidade do andarilho, que não pode esquecer que todos os movimentos devem primar pela evolução”.

Confessei que sentia um pouco de culpa todas as vezes que considerava a hipótese de limitar a minha ajuda. Loureiro balançou a cabeça, como quem diz entender as minhas palavras e explicou: “Entender a diferença entre culpa e responsabilidade é primordial. A culpa é uma poderosa sombra que aprisiona ambas as partes em relação doentia que transforma afeto em vício e, portanto, deve ser iluminada para se transformar em responsabilidade. A responsabilidade é o perfeito equilíbrio entre a independência e a solidariedade que deve existir em todos os relacionamentos, na clareza da percepção do andarilho em sentir a beleza de compartilhar e o cuidado para que o outro faça a parte que lhe cabe para que possa aprender, se transformar e, um dia, aquele que foi atendido irá devolver em amor aquilo que já foi dor. A responsabilidade engrandece e liberta. Só, então, poderá seguir. Cada qual ao seu tempo”.

Ficamos um tempo em silêncio que não sei precisar. O artesão levantou a taça em brinde e finalizou aquela noite: “À riqueza que há em todas as nossas relações. Consigo mesmo e com todos no mundo, que tanto aperfeiçoam e ensinam a transformar lágrimas em sorrisos”!

 

12 comments

Miquelyna junho 17, 2016 at 11:10 am

Mensagem que me faz concluir muitas fases da vida, relações e despedidas. Me deixa mais compreensivel diante dos fatos que se cruzam e entrecruzam, deixando suas lições e gosto maravilhosos em nosso ser. Onde a essência prevalece diante de qualquer circunstãncia. Obrigada Yoskhaz.

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Michelle Osaine Ferreira junho 17, 2016 at 6:48 pm

Suas mensagens me traz inspiração, me transporta para um universo de magia e me traz de volta para a realidade com as lições aprendidas. Grata!!!

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Sandra junho 17, 2016 at 8:22 pm

Como sempre…amei e guardarei o melhor dentro de mim para poder repassar no momento oportuno ao outro!

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Caroline junho 17, 2016 at 10:52 pm

S2!

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Christina Mariz de Lyra Caravello junho 19, 2016 at 11:20 pm

“Sempre temos que fazer escolhas, afinal esta é a única maneira de aperfeiçoarmos o espírito. Nossas escolhas nos definem e o convívio social é onde residem as grandes provas. Até aonde devo ir para atender o outro e qual o ponto em que devo parar para cuidar de mim é uma questão que sempre trouxe questionamentos e conflitos emocionais”…

De uma certa forma, foi o que aconteceu com minha tia Marilda. Ela era uma pessoa moderna, não ficava satisfeita com o pré-estabelecido…gostava de argumentar, de defender seus pontos de vista, queria saber sempre os vários lados de uma mesma questão.

Já casada e com filhos, quis voltar a estudar, um de seus sonhos que até então não conseguira realizar. Já não estudava há mais de trinta anos. Matriculou-se num curso de professores particulares apenas para aprender matemática, física e química. E passou em todas as matérias. Com seu diploma de segundo grau, resolveu fazer vestibular, só para ver como era. Passou, para Turismo. E seu marido fez questão que cursasse. Foram quatro anos de sonho, de encantamento. Estagiou por 6 meses e depois foi aproveitada pela direção do Rio Centro. Como não tinha feito concurso ela,e todos os outros na mesma situação, tiveram que sair.

No ano seguinte, dedicou-se a dar infraestrutura para sua filha casada que, morando no R.G. do Sul, estava esperando o segundo filho. Ela teve a criança no R.Janeiro e depois de quatro meses tia Marilda voltou com ela para ajudar a estabelecer uma rotina doméstica .

Quando retornou, resolveu estudar para um concurso. E seu marido teve que operar um
câncer nas cordas vocais e, depois da convalescença, resolveu que queria conhecer a casa de sua filha, cujo marido havia sido transferido para Fortaleza. Tia Marilda estava na expectativa da saída do Edital com a data para as provas. Mas ele não quis esperar e assim ela viajou com ele.

Ele não era um homem egoísta. Sempre deu a maior força para tudo que a mulher quisesse fazer. Mas a voz prejudicada pela operação nas cordas vocais e o aumento do consumo de bebida estavam, aos poucos, modificando sua personalidade.

A partir daí, tudo foi piorando por causa da bebida. Por três vezes quis se separar porque a situação estava cada vez mais difícil e de cada vez, ele prometia e deixava de beber. Mas a doença era mais forte e minha tia sofria por ele, por ela e pelos filhos, principalmente porque ele estava se transformando em outra pessoa.

“Entender a diferença entre culpa e responsabilidade é primordial. A culpa é uma poderosa sombra que aprisiona ambas as partes em relação doentia que transforma afeto em vício e, portanto, deve ser iluminada para se transformar em responsabilidade. A responsabilidade é o perfeito equilíbrio entre a independência e a solidariedade que deve existir em todos os convívios, na clareza da percepção do andarilho em sentir a beleza de compartilhar e a necessidade do outro em se esforçar para aprender e se transformar. A responsabilidade engrandece e liberta. Só, então, poderemos seguir. Cada qual ao seu tempo”.

Em determinado momento, ela entendeu que ele precisava dela, ninguém da família tinha condições de se responsabilizar por ele que, na melhor das hipóteses, teria sido internado em alguma clínica. Escolheu a responsabilidade à culpa, que transforma afeto em vício. Ele já não tinha condições nem físicas nem mentais para aprender e se transformar.

Tia Marilda abriu mão de muitas coisas, de muitos sonhos para se dedicar a seu marido e nunca reclamou nem se queixou disso enquanto ele viveu. E ele teve toda assistência médica, hospitalar e teve o mais importante, o carinho dela e de seus filhos.

Portanto, nem sempre a ajuda que queremos e podemos dar é da forma tecnicamente desejável. Mas é a mais humana,

“A maneira como convivemos com tudo e com todos é que permite a exata medida do que somos e em qual estação do Caminho estamos. Sem o outro não podemos exercitar o que temos de melhor; logo, não conseguiremos evoluir. Sem o outro não conseguiremos sair do lugar. Isto nos torna necessariamente solidários”.

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Vanessa junho 19, 2016 at 11:49 pm

Tim tim! Belo brinde!

“…a responsabilidade é o perfeito equilíbrio entre a independência e a solidariedade…”

Obrigada pelas sábias e generosas palavras!

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Koishima junho 23, 2016 at 8:31 am

Com certeza, ao som de um bom jazz, lendo imaginei e viajei junto, como se eu estivesse ao vossos lados.. Refleti que nunca conseguirei ficar solitario.. Sempre precisarei das pessoas para que eu possa aux. E ao passar dos tempos, como fui sempre me dando bem em aux as pessoas em decisões pessoais, comecei a ter essa clareza de que não sou responsavel pela vida delas, as escolhas que elas tomam, eu não posso tomar para mim tbm, e lendo isso, confirmei e sinto que estou no caminho certo, meu caro monge! Namaste.

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Nelson furlan outubro 8, 2016 at 6:55 am

Liçao.

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Carla outubro 8, 2016 at 8:47 am

Olá!
Não localizei o áudio.

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Yoskhaz outubro 10, 2016 at 11:21 am

Carla, tivemos um probleminha na produção do áudio. Ele será inserido no site hoje no final da tarde.

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Yoskhaz outubro 10, 2016 at 12:02 pm

Pronto, Carla!! Já está no site.

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Hélio Dauto Proença janeiro 29, 2017 at 8:46 pm

Muito bom…
Realmente é muito sutil a linha que divide entre acolher o outro e aprisioná-lo, mais com certeza a gente só aprende praticando, ai como diz os mestres devemos escolher o caminho do meio…
Ver as necessidades reais daqueles que cruzam nosso caminho, trata los com amor, compaixão, e ensina los a caminhar com as próprias escolhas…
Assim todos crescemos!
Paz e Luz

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