MANUSCRITOS II

A bagagem

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, tinha sido convidado a ministrar uma série de palestras sobre os mais variados temas em outro mosteiro, bem distante do nosso, onde funciona uma irmandade com preceitos distintos da qual pertenço. Na essência, as diferenças mais aproximam do que afastam. Naquela época, eu era o discípulo designado para acompanhar o monge. Todos ficaram encantados com o Velho. Uma imagem serena, sempre com um sorriso discreto no rosto, o olhar que espelhava paciência, as palavras sábias pronunciadas em voz mansa e, principalmente, com atitudes, mesmo nos pequenos gestos, que transbordavam o mais puro amor. Ele dizia que servir como exemplo é o argumento mais poderoso que alguém pode oferecer; é a “verdade viva”. Por duas vezes, nessa viagem, o monge pediu para que eu abrisse a palestra do dia com introduções rápidas sobre o tema que seria abordado em seguida por ele, fato que me rendeu alguns elogios, muito mais como reflexo das aulas do Velho do que por mérito meu. No entanto, eu estava mal. Um aluno daquele mosteiro que me cedera uma vaga em seu quarto durante os dias que ali ficamos vinha me perturbando com uma saraivada de críticas, seja em relação ao breve discurso que iniciava as palestras, seja por causa de algum outro comportamento meu que ele indicava como inadequado. Em tudo ele apontava defeito. Quando o Velho entrou no quarto para saber se eu já estava pronto para viajarmos de volta, me encontrou arrumando a mala tal e qual se encontrava o meu coração: em total bagunça e desalinho.

Questionado, relatei os motivos da minha irritação. O Velho pediu para que eu parasse de arrumar a mala e fôssemos caminhar um pouco. Lembrei que tínhamos que partir, e ele disse: “É necessário entender o que levamos na bagagem para prosseguir a viagem”. Falei que colocava na mala apenas as minhas roupas e pertences pessoais. O bom monge apontou a mala sobre a cama com o queixo e me corrigiu: “Não falo dessa mala”, colocou a mão no próprio peito e complementou: “Me refiro à bagagem sagrada, aquela que levamos no coração”.

Enquanto passeávamos no belo jardim daquele mosteiro, contei toda a implicância do outro discípulo para comigo. Falei e falei até esgotarem as minhas queixas. O Velho, que tinha escutado a tudo com enorme paciência, disse: “Buda ensinava que ‘sempre que eu permitir que a raiva faça a sua morada em mim, perderei a batalha’”. Deu uma pequena pausa e continuou: “O maior combate é aquele que travamos dentro de nós. É iluminar as sombras que nos habitam. E elas são muitas e diversas. A raiva, a irritação e a mágoa são apenas algumas das suas muitas espécies. O convívio social traz os aliados, aquelas pessoas que nos ajudam e fortalecem a manter acesa a chama da luz a iluminar os nossos passos. Traz, também, os adversários, que parecem ter como missão a função de alimentar as sombras que se escondem em nós. Uns são tão importantes quanto os outros. Enquanto os aliados colaboram de maneira explícita ao ajudar, os adversários o fazem de modo implícito ao atrapalhar. Os antagonistas funcionam, a nível do inconsciente, como mestres ocultos a nos ministrar, através do conflito, a exata lição, aquela para a qual já estamos prontos”. Interrompi para dizer que não entendia. O Velho explicou: “Ao permitir a manifestação da minha sombra, tomo consciência, não só de sua existência, mas do quanto ela me atrapalha e ilude. Assim, caso esteja com a mente desperta, posso iniciar o processo de aperfeiçoamento dessa faceta do meu ser”.

Falei que não estava entendendo. O Velho foi mais didático: “É como em um filme. O mocinho precisa do bandido para exercitar as suas capacidades. Caso contrário, viverá uma vida de estagnação e uma história sem encanto ou interesse. Desse modo, quanto mais sofisticado for o vilão melhor será a história, pois permitirá ao herói desenvolver poderes que ele mesmo desconhece, para, então, se superar. Percebe que é o conflito que move a narrativa? Na vida não é diferente. Cada qual é o herói da própria história e, por consequência, termina por ser o vilão da história alheia, pois, de um modo ou outro, sendo justos ou não, em algum momento agimos em desacordo com as expectativas de alguém. Para desempenhar o seu papel, o herói precisa do vilão para entender como reage diante das dificuldades que surgem. Como reagimos diante das adversidades? Esta é a perfeita régua a nos medir.  Aproveite a oportunidade para aprender sobre si mesmo; lapidar as arestas que cortam, a você e aos outros; oferecer o seu melhor e avançar, sempre em busca da integralidade e da plenitude do ser”.

Perguntei se o conflito é, de fato, necessário. O Velho explicou com paciência: “Vivemos em plano de existência onde os conflitos ainda são importantes como instrumentos para a conquista da harmonia pessoal. A maior prova disto é a existência das sombras pessoais. Enquanto você acreditar que as suas frustrações são motivadas pelo o outro, haverá conflitos e estagnação. Perceber as sombras significa um convite ao enorme e fundamental trabalho a realizar consigo. Nos relacionamentos, de qualquer nível, os interlocutores desagradáveis têm a sagrada missão de fazer com que as sombras se manifestem através da adversidade e da contrariedade. Agradeça a eles por isto. Assim, é possível identificar e iluminar o que precisa ser transmutado dentro de você. Se prestar atenção e houver sinceridade na jornada de autoconhecimento, verá que o adversário nunca é o outro, mas você mesmo. Como um guardião do limiar, ele apenas mostrou a você, ainda que de maneira grosseira, onde será travada a luta para que o próximo portal do Caminho seja ultrapassado”, apontou para o meu peito e disse: “Dentro de si mesmo”.

“Entende a importância de cada pessoa na sua vida”? O Velho perguntou. Respondi que não via nenhum valor em um sujeito que parecia me perseguir com a única finalidade de perturbar. Disse que gostaria de viver em paz com todos. O monge sorriu e disse: “Exato! E é por ainda não conseguir que está nesta estação. Todos querem viver em paz, mas poucos estão prontos para assumir as próprias responsabilidades evolutivas. Ainda preferem o conforto de distribuir culpas a esmo. Entende que o comportamento dele, embora inadequado, traz valiosas lições”?  Confessei que não conseguia ver nada de bom em toda aquela aporrinhação. O Velho arqueou os lábios em lindo sorriso e as enumerou: “Percebe que algo em você também incomoda a esse outro discípulo? Provavelmente é uma qualidade ou um dom que ele muito admira, mas por não conseguir administrar com humildade as virtudes que ainda não domina, permite que a vaidade ou a inveja se manifestem através de atitudes agressivas. Pode, também, ser ao contrário: ele enxerga em você uma dificuldade que também existe nele e que, inconscientemente, não consegue admitir. Acaba por reagir com críticas duras a você para fantasiar a si mesmo com a perfeição que não consegue alcançar”. Perguntei por que tinha que ser assim. O Velho me ofereceu um olhar repleto de compaixão e disse: “É assim com todos. Como as sombras têm a função de camuflar as dificuldades ao próprio ego, elas vão apontar a artilharia para as características de outra pessoa, ora colorindo os defeitos com cores fortes, ora colocando eventuais falhas sob poderosa lente de aumento. O que incomoda a esse aluno não são os equívocos do Yoskhaz, mas as dificuldades dele próprio, com as quais ainda não consegue lidar ou patamares evolutivos que não consegue atingir. Percebe o truque das sombras? Na ilusão de proteger, elas impedem o melhor olhar. Assim cada qual se torna a principal vítima das próprias sombras e, pior, sem perceber. Então, surge o vilão na tentativa de despertar o herói adormecido em cada um e em todos. Enquanto não entender a si mesmo, não conseguirá se aperfeiçoar. Portanto, há que se ter paciência para com o outro e muita atenção para consigo mesmo”.

“Por sua vez, você mostrou uma enorme dificuldade com as críticas. Esta é a segunda lição”, continuou o monge. Contestei de imediato e argumentei que as críticas eram injustas. O Velho franziu a sobrancelha e disse com a voz doce, porém repleta de seriedade: “Não vi você questionando os elogios quando os recebeu. Seriam todos devidos? Se nem todas as críticas são justas nem todos os elogios são merecidos. Se por um lado não podemos permitir que nenhuma crítica nos derrote, mas seja apenas elemento de reflexão e transformação, por outro lado a sabedoria impõe que o mel dos elogios não lambuze todo o ego a impedir os próximos movimentos rumo à evolução. E mais uma vez lembro de Buda a nos ensinar a trilhar a estrada do meio como ponto de equilíbrio, para que um extremo não elimine o outro e, assim, não impeça a conquista da integralidade do ser”.

Abaixei os olhos e não disse palavra, pois sabia do que o monge falava, mas tinha dificuldades para viver de acordo com aquele conhecimento, não permitindo que as lições se transformassem em sabedoria, como um pão que apodrece esquecido na vitrine. O Velho continuou: “É justamente para encontrar essa harmonia interna que voltamos ao início da conversa: aprender a fazer a mala. O que levamos na bagagem define a maneira como percorremos o Caminho. É preciso leveza caso queira usar as asas. Portanto, a mala não pode carregar o chumbo da raiva, da mágoa, da inveja, do ciúme, da insegurança e outras tantas sombras, sob o risco de não conseguir se mover por causa de tanto peso. São os ventos do perdão, da tolerância, do respeito e do amor que te impulsionam para o alto”. Deu uma pequena pausa para eu concatenar as ideias e concluiu: “Nada em ninguém pode nos incomodar. Quando isto acontece, não tenha dúvida, há algo de errado na própria bagagem. É o momento de abrir e modificar o seu conteúdo”.

“Não perca tempo nem desperdice energia se lamentado ou tentando mudar os outros. Só os tolos fazem isto. Ofereça sempre o seu melhor e manifeste a sua verdade de maneira mansa e clara. Depois, siga. Cada qual tem a própria jornada para percorrer”.

“A plenitude é a sagrada arte de manter a paz interna acima dos inevitáveis conflitos externos. O fato de permitir que o outro discípulo abalasse a sua paz revelou as muitas fragilidades que ainda precisam se aperfeiçoadas em você. Não esqueça de agradecer a ele antes de partir”. Tornei a ficar em silêncio, balancei a cabeça em concordância e, antes que pudesse falar, o Velho finalizou: “Está na nossa hora ou perderemos o trem. Vá pegar a sua mala no quarto”. Piscou olho com jeito maroto e perguntou: “Já sabe o que vai levar na bagagem na volta para a casa”?

 

 

14 comments

Nazaré Dimaria julho 6, 2016 at 11:36 am

Só gratidão por esse texto.. Foi perfeito. Obrigada!!!!

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Vanessa julho 6, 2016 at 1:36 pm

“A plenitude é a sagrada arte de manter a paz interna acima dos inevitáveis conflitos externos”.

Obrigada pelas palavras sábias de todo o texto e pela sua generosidade em compartilhá-las.

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Rosângela julho 6, 2016 at 1:40 pm

Não tenho duvidas que os seus textos venha dos céus..Muito abrigada
Como diz a colega Nazaré Dimaria , Só gratidão.

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Andrea Ribeiro julho 6, 2016 at 6:36 pm

Obrigada!
As vésperas de viagem de férias e com o coração apertado por tantas emoções por causa de conflitos constantes, pude refletir neste ensinamento e esvaziar as malas para rever o que de fato é necessário levar.
Estava precisando muito desta reflexão.
Agora minha bagagem se tornou bem mais leve e meu coração iluminado tem espaço de sobra para acomodar as novas experiências da vida com muito mais amor.

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Miquelyna julho 6, 2016 at 9:52 pm

Analisar a bagagem diária, ainda na cama, é fundamental. Para ao fim do dia permanecer leve, mesmo vivendo uma gama de coisas e diversas situações. A paz se constrói em pequenos passos.

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Christina Mariz de Lyra Caravello julho 7, 2016 at 9:15 pm

“O maior combate é aquele que travamos dentro de nós. É iluminar as sombras que nos habitam. E elas são muitas e diversas. A raiva, a irritação e a mágoa são apenas algumas das suas muitas espécies. O convívio social traz os aliados, aquelas pessoas que nos ajudam e fortalecem a manter acesa a chama da luz a iluminar os nossos passos. Traz, também, os adversários, que parecem ter como missão a função de alimentar as sombras que se escondem em nós. Uns são tão importantes quanto os outros.”

Os adversários são aqueles que, a princípio, em nosso entender primário, atrapalham nossa vida, tumultuam, embaralham nosso entendimento. Mas são eles que provocam também nossa reação, o desejo de combater o que está errado, a vontade de iluminar nossas sombras.

Eles são muito importantes em nosso processo de evolução porque são a ação que vai provocar a reação. Os embates existem na vida, como as guerras, por exemplo, porque existem lados contrários, lados antagônicos.

“Se prestar atenção e houver sinceridade na jornada de autoconhecimento, verá que o adversário nunca é o outro, mas você mesmo. Como um guardião do limiar, ele apenas mostrou a você, ainda que de maneira grosseira, a luta a ser travada dentro de si para que o próximo portal do Caminho seja ultrapassado”.

A maneira de como vamos lidar com com nossos adversários, com as nossas sombras, é a lição primeira que temos que aprender: e é o reconhecimento de que a mudança sempre terá que ser nossa, que tornará mais leve a bagagem que iremos carregar no Caminho e em todos os seus marcos a serem ultrapassados.

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Marilucia julho 12, 2016 at 12:20 pm

Muito obrigado! Luz para ti… Muito obrigado!!!

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Fátima serra julho 12, 2016 at 5:06 pm

Obrigada pela lição eu estava precisando muito disso muito obrigada

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Cris Silveira julho 15, 2016 at 8:14 pm

Gratidão!

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Antonio Carlos V de O Motta julho 18, 2016 at 5:30 am

Mais sementes para serem lançadas e dignas de compartilhamentos. Gratidão

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Rita Lemos julho 23, 2016 at 12:43 pm

Acredito q nossos sentimentos mudando evoluindo,nosso padrao mental se modificando,haverá menos conflito com certeza e a plenitude surgirá.

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Julia Reuter julho 23, 2016 at 5:31 pm

Texto maravilhoso!

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Doriana agosto 7, 2016 at 10:32 am

Amor Maior, GRATIDÃO

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Francisco Ribeiro outubro 9, 2016 at 8:49 pm

Grato pelos ensinamentos deste texto. Da forma como foram passados não resta dúvida do que temos de fazer e buscar…

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