MANUSCRITOS II

A porta

 

De todos os lugares do mosteiro, a biblioteca sempre foi o meu preferido. Escolher um dos inúmeros títulos disponíveis, se acomodar em uma de suas confortáveis poltronas e dividir a atenção entre as letras e a maravilhosa paisagem das montanhas, proporcionada pelas enormes janelas, permitem momentos de pura magia. Muitas vezes encontrei o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, em algum canto, encantado pela leitura ou em viagem profunda nos mares da reflexão. Nesse dia, eu tinha acabado de escolher um livro quando percebi que ele me observava. Arqueou as sobrancelhas querendo saber qual eu escolhera. Mostrei a capa e ele sorriu em aprovação. Era uma coletânea de palestras ministradas por Yogananda. Aproveitei que havia uma poltrona vaga ao seu lado e me sentei. Perguntei o que ele lia. O monge respondeu em um sussurro: “O Sermão da Montanha”. Certa vez, ele tinha me revelado que lia esse pequeno texto todos os dias antes de iniciar qualquer outra leitura, porém não imaginava que ele falava em sentido literal. Diante da minha expressão de surpresa, o Velho falou: “As letras do Sermão são vivas e sempre me trazem ensinamentos sem fim”. Eu já o tinha lido várias vezes e perguntei sobre qual trecho o monge meditava. Ele disse com a sua voz suave: “Aquela parte que diz que ‘estreita é a porta e apertado o caminho da vida. Raros são os que o encontram’”. Eu disse que sabia do que se tratava e me adiantei para mostrar toda a erudição que pensava ter. Falei que aquele capítulo tinha a função de orientar sobre o cuidado para não insistirmos nas estradas largas da perdição. Acrescentei que não encontrava maiores dificuldades em sua interpretação, bastava que fôssemos sempre honestos. Simples assim. O Velho me ofereceu um doce sorriso de agradecimento em resposta e voltou a se concentrar na leitura e em seus pensamentos. Fiquei orgulhoso de mim.

Passados alguns dias, tornei a encontrar o Velho. Eu estava irritadíssimo. Uma discórdia familiar sobre a repartição da herança deixada por um familiar vinha causando estranheza entre pessoas que conviveram por toda uma vida e, aparentemente, se amavam e se respeitavam. Parecia que eu não conhecia mais ninguém. Me ofereceram propostas de divisão que eram absurdas, sob alegações e fundamentos tão tortuosos que beiravam ao ridículo. Porém, era tudo muito sério e eu vislumbrava uma enorme perda financeira. Pedi ao monge um conselho que pudesse suavizar o meu coração da mágoa que sentia. Ele me olhou com bondade e disse: “É hora de atravessar a porta estreita”. Deu uma pausa proposital e disse: “Seja honesto”. Rebati dizendo que eu estava sendo absolutamente honesto, os outros é que eram desonestos comigo. Eles queriam usurpar o que era meu por direito. Esta era a razão do meu sofrimento. O Velho franziu as sobrancelhas e disse: “Se você atravessou a porta ao ser honesto e, além dela, está a estrada da luz, por que o vejo desorientado e com tanta agonia”?

Perguntei se agia errado em ser honesto e em privilegiar os meus interesses. O monge respondeu com muita seriedade na voz: “De jeito nenhum. Ser honesto é obrigação do andarilho. É uma virtude indispensável para a conquista da dignidade que o autoriza a trilhar o Caminho. No entanto, ser honesto, por si só, não basta. Para atravessar a porta estreita e seguir pela difícil estrada da luz é preciso mais”. Envergonhado, abaixei os olhos. Em gesto de humildade, pedi para que me ensinasse um pouco sobre a porta.

Andamos até refeitório, nos servimos com canecas de café e sentamos. Então, o Velho falou: “A porta estreita é uma escolha, talvez a mais importante da vida. Tão valiosa que você tem que reafirmá-la todos os dias, pois enormes são as tentações que teimarão em desviar os seus passos. A porta estreita é a escolha das virtudes da alma em detrimento dos valores do ego; é a estrada dourada do coração. É o início do Caminho”.

“Vou lhe adiantar uma coisa: não é fácil. Primeiro é preciso ver a porta, muitos ainda nem isto conseguem. Depois é preciso atravessá-la e, em seguida, se manter na ‘estrada apertada’. Vários sucumbem diante dos apelos do mundo ou das dificuldades encontradas. Por fim, terá que incorporar o Caminho ao seu jeito de ser. Ou seja, andarilho e caminho se fundem, se tornam uno; é o momento das cortinas se abrirem para uma nova etapa. Significa que você desembarcou na estação das Terras Altas”. Deu uma pausa e concluiu: “Mas não esqueça: a viagem é dura, mas é doce. E mais, é infinita”.

Falei que entendia, mas não muito. Pedi para ele explicar melhor. O Velho se esforçou para ser didático: “Todos somos educados dentro dos padrões da sociedade que valorizam a fama vazia, o brilho sem luz, os aplausos fáceis, as celebridades que nada transformam, o dinheiro como instrumento de poder, a aparência ao invés da essência. São condicionamentos sociais, culturais e ancestrais tão arraigados ao ego que quase nunca perguntamos o valor de estarmos na busca por tais objetivos. Agimos por automatismo, sem maiores questionamentos, pois essas são as conquistas que trarão o reconhecimento e a admiração da maioria das pessoas que nos cercam”.

“Seguir nessa busca tem a facilidade de acompanhar os trilhos do ego construídos há séculos sem qualquer contestação. É agradável, pois o ego deseja as conquistas materiais que representarão luxo, prazeres sensoriais e reverência. As sombras da vaidade e do orgulho se agigantarão e o convencerão que você é mais do que os demais. Você acreditará que nasceu para ter o mundo aos seus pés”.

“No entanto, não é essa a sinfonia do universo. A vida tem um compromisso inexorável com a evolução. A evolução está ligada à libertação e à plenitude da alma. Para se libertar das opressões mundanas deve-se aprender a ser mais com menos. Do quanto menos a pessoa precisar mais livre ela será. Esta é a equação da liberdade. O desejo em ter gera dependências e conflitos em função de desnecessidades fundamentais, esquecendo em um canto qualquer a beleza da construção em ser. O que o habilita a seguir a viagem não é o tamanho da sua mansão ou da conta bancária, mas a grandeza do seu coração”.

“O desejo desenfreado por aquisições incessantes fragiliza a existência por criar uma dependência crescente que o ilude quanto à conquista da paz e da felicidade. Belos ornamentos externos nem sempre espelham a verdade interna. Não raro o luxo aparente apenas esconde uma enorme miséria essencial. O resultado são pessoas que precisam da arrogância para mostrar o poder de que carecem, a força interna que não possuem. Alimentam o orgulho e a vaidade pela necessidade em esconder, até de si mesmo, toda a fraqueza que sentem, como um suntuoso palácio montado sem os alicerces fundamentais que o faz vulnerável à menor ventania. O que engrandece o andarilho não é o número de países que já visitou, mas a viagem profunda que faz para conhecer a si mesmo”.

“Modernamente os desejos do ego têm criado um triste batalhão de sofredores e agoniados; estabelecidos no mundo, mas perdidos em si mesmo. Drogas na tentativa de escapar de si mesmo; diversões barulhentas para abafar a voz silenciosa do coração; óculos escuros para esconder aos olhos de todos os olhos que revelam as feridas abertas da alma. Depressão, terapias, ansiolíticos, antidepressivos e a ilusão de que poderão fugir eternamente do espelho que mostrará, cedo ou tarde, a exata fotografia do ser esfomeado por luz”.

“Os desejos do ego tornam a existência cada vez mais pesada e escorregadia, quando na verdade precisamos da leveza da alma para que as suas asas possam nos sustentar sobre os precipícios da existência. No ápice da plenitude podem lhe rasgar a roupa, incendiar a sua casa e jogar o seu corpo em um cárcere insalubre. A alma plena continuará intocada e inatingível. A plenitude é a cura das fragilidades do ego. É a paz interna e eterna, tão poderosa que o manterá além das maldades e ofensas comuns do planeta”.

Perguntei sobre a consequência de me negar a atravessar a porta. O Velho balançou o ombro, com quem diz não ter saída e explicou: “Lembre que o universo está conectado com a sua evolução em razão da necessidade inadiável de expansão de todo o cosmo. Não esqueça que você é parte do todo; logo, o todo está em você. Esta é a sua força e, também, o seu compromisso. Então, na sequência de cada escolha virá um novo ciclo de aprendizado. Suave ou severo, sempre em justa reação às suas escolhas”.

“Na recusa ao aprimoramento as lições vão se tornando mais duras. Falências, doenças e conflitos estão intimamente ligadas à necessidade do ser em rever os próprios conceitos. Dificuldades financeiras têm o poder de mostrar a riqueza dos valores nobres e imateriais da vida; enfermidades costumam se tornar uma farmácia para a alma; conflitos permitem óticas e atitudes mais apuradas quanto a sabedoria e o amor necessários à felicidade. São situações que atingem em cheio ao ego; no entanto, aperfeiçoam a alma rumo à liberdade e à plenitude. Ao final, acabamos por sintonizar o ego no diapasão da alma, entendendo as oportunidades de transformações oferecidas. Da sombra se faz a luz. Sim, a vida é sempre é muito generosa. O que o ego selvagem chama de desgraça, a alma iluminada agradece pela graça”.

Pedi que me aconselhasse no caso concreto e me dissesse o que fazer. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso, revelando toda a sua bondade e falou com a sua voz mansa: “Não faço a mínima ideia, Yoskhaz. Administrar a vida alheia é mero ato de leviandade e arrogância. Cada qual é o seu próprio mestre e absolutamente responsável por suas escolhas. Somente assim nos é permitido avançar”. Deu uma pequena pausa e disse: “Analise profundamente a si mesmo e as suas prioridades neste momento. Só assim saberá a batalha para qual já está pronto para lutar: enfrentar os seus parentes para defender um patrimônio que lhe pertence por direito ou abrir mão desta discussão para se concentrar em outras conquistas”. Arqueou as sobrancelhas e disse sério: “Qualquer que seja a decisão, será preciso perdão e compaixão sobre todos os envolvidos para que as teias da mágoa e do ressentimento não atrapalhem a alegria e a leveza de caminhar. Então, escolha por amor, pois só o amor tem esse poder”. Arqueou os lábios em lindo sorriso e finalizou: “A porta estreita é aquela que revelará a estrada para a liberdade e a plenitude. É a escolha que trará as transformações pessoais. É a trilha que permitirá florescer o melhor que habita no andarilho, mas ainda está oculto”.

 

 

 

 

8 comments

Nazaré Dimaria agosto 2, 2016 at 8:19 pm

Maravilhoso.. Gratidão!!

Reply
Christina Mariz de Lyra Caravello agosto 3, 2016 at 1:57 am

A partir do instante em que tomamos conhecimento das leis espirituais que regem o roteiro de nossa existência, dos obstáculos que enfrentaremos, das dificuldades para encontrar o Caminho e das escolhas que teremos que fazer entre o espiritual e o terreno, há uma sensação de vazio, de injustiça, de desesperança porque, afinal, a vida com todas as suas nuances,seus conflitos, seus desafios, suas alegrias e tristezas, seus amores e desamores, seu parar ou seu continuar e até mesmo nosso próprio nascimento não são, de um modo em geral, escolhas conscientes nossas…
A impressão que fica é que quando nascemos vem junto uma lista enorme, agregada, de múltipla escolha, ou essa ou aquela atitude, perante os mais variados enunciados que vão se oferecendo em nossas vidas.
E até haver o momento mágico da iluminação, a gente ama e nem sempre pode amar, a gente fica triste, se sente muitas vezes injustiçado, preterido, enfim, muitos até nem entendem o sentido maior da existência.
Não que seja fácil mesmo depois que ficamos sabendo da verdadeira missão humana de evoluir para poder atingir os caminhos das Terras Altas.
“Na recusa ao aprimoramento as lições vão se tornando mais duras. Falências, doenças e conflitos estão intimamente ligadas à necessidade do ser em rever os próprios conceitos. Dificuldades financeiras têm o poder de mostrar a riqueza dos valores nobres e imateriais da vida; enfermidades costumam se tornar uma farmácia para a alma; conflitos permitem óticas e atitudes mais apuradas quanto a sabedoria e o amor necessários à felicidade. São situações que atingem em cheio ao ego; no entanto, aperfeiçoam a alma rumo à liberdade e à plenitude. Ao final, acabamos por sintonizar o ego no diapasão da alma, entendendo as oportunidades de transformações oferecidas. Da sombra se faz a luz. Sim, a vida é sempre muito generosa. O que o ego selvagem chama de desgraça, a alma iluminada agradece pela graça”.
O acesso ao início da estrada é uma porta estreita que demoramos a encontrar e mesmo quando a ultrapassamos encontramos um caminho de difícil caminhar.
Mas já nessa etapa, nossa caminhada é suportada pelo aprendizado adquirido em mensagens recebidas de diferentes maneiras, ou escritas ou pelas vozes de muitos mestres que nos fortalecem para enfrentar as adversidades, fazendo-nos entender e aceitar como necessárias à nossa evolução.
E, dessa forma, conseguimos encontrar os atalhos que nos levam ao verdadeiro Caminho da Luz.

Reply
M M Schweitzer agosto 3, 2016 at 4:19 pm

Esse lindo texto me ensinou a diferença entre ver a porta e caminhar através dela, existe um mundo de diferença entre saber o que deve ser feito e o fazer. Existe um caminho de luz, e com cada texto que leio aqui me sinto dando um passo na direção dessa bela luz.

Reply
Rosângela agosto 4, 2016 at 1:53 pm

Amo por demais os seus textos…Obrigada
lindo perfeito como todos os outros..

Reply
Rosa agosto 8, 2016 at 8:44 am

Divinos esses textos !!!!!

Reply
Gabriel S.Veturini agosto 16, 2016 at 10:58 pm

Incrível, não importa o caminho a verdade é só uma e aqueles que se aproximam das frações dela bebem da mesma fonte, variáveis são as culturas e meios, mas a fonte de luz é somente uma. Que texto único e cheio de vida, a consciência vibra ao entrar em contato com ele, é como uma gota de vinho que a alma se delicia. Parabém Yokhaz.

Reply
Rosiane H. M. C. Leite outubro 31, 2016 at 6:39 pm

GRATIDÃO !!!!

Reply
Hélio Dauto Proença fevereiro 3, 2017 at 9:59 am

Realmente esta viagem ao nosso interior é fascinante, e o interessante é que quanto mais luz formos capaz de irradiar sobre nossas sombras mais descobrimos quanto ainda temos que aprender…
A viagem é infinita…

Reply

Leave a Comment