MANUSCRITOS III

A luz do mundo e um bolo de laranja

 

O dia amanhecia. Eu estava na pacata estação da pequena e charmosa cidade, situada no sopé da montanha onde fica o mosteiro, à espera do trem que me levaria com o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, até uma movimentada metrópole, sede de uma prestigiosa universidade. Ele era muito requisitado para palestras em escolas, empresas e centros comunitários. Nunca recusava um chamado. Na impossibilidade de alguma data em razão de outro compromisso, não sossegava enquanto não ajeitava o calendário para atender ao pedido. Como o nosso trem ainda demoraria um pouco, fomos até a cafeteria da estação em busca de uma xícara de café fresco e do famoso bolo de laranja com gengibre feito pela gentil dona do estabelecimento. Devidamente acomodados, com duas canecas fumegantes à frente, perguntei se ele não sentia necessidade em ter mais tempo para descansar. O monge bebericou o café e disse: “Descansar é muito importante, assim como ter um tempo para dedicar a mim, encontrar comigo mesmo e ‘arrumar a casa’”. Deu um sorriso e complementou: “Fazer faxinas rotineiras são de extremo valor para que possamos varrer a poeira dos sentimentos densos, consertar as emoções que quebraram, trocar a decoração ultrapassada das ideias que não mais embelezam a vida, abrir as janelas para uma troca de ares e permitir ao sol entrar. A minha casa é o meu ponto de observação e interação com o mundo”. Bebeu mais um gole de café e prosseguiu: “Da mesma maneira, tem grande importância dedicar um tempo à diversão. A arte, através de qualquer das suas modalidades, que tanto nos ajudam a ver além das fronteiras dos condicionamentos e da rotina do cotidiano, encontrar com os amigos, com a família para boas conversas e, acima de tudo, rir bastante, têm a força de alimentar a alma”. Olhou-me nos olhos e concluiu: “No entanto, apenas quando estou servindo sinto o poder do universo de um jeito diferente. Quando compartilho o melhor que há em mim, levo conforto ao coração de alguém, ajudo a brotar o sorriso no rosto de outra pessoa ou consigo, com uma palavra, iluminar a escuridão nos porões de uma alma, é como se as mãos das estrelas se acoplassem às minhas e todo o meu ser ardesse em fogo, tamanha é a luz que me invade. É o perfeito sentimento do sagrado”.

Fomos interrompidos pela educada garçonete para avisar que o bolo de laranja com gengibre ainda demoraria alguns minutos até que estivesse no ponto de ser retirado do forno. O Velho, com o seu bom-humor habitual, agradeceu com um sorriso, disse que esperaria o tempo necessário e brincou que até faria o maquinista do trem esperar: “Ele não se arrependerá”, acrescentou. Em seguida, prosseguiu com a nossa conversa: “Não importa a sua condição social, financeira nem o nível de escolaridade. Vale estar desperto para a oportunidade de movimentar qualquer uma das suas virtudes, seja aquelas em flor, seja outras ainda em embrião. Cuidar da sua casa ao mesmo tempo em que colabora com a obra do mundo, no expoente da capacidade que já tenha atingido e no exercício do pleno aperfeiçoamento daquilo que pretende ser, funciona como uma lanterna a orientar, além dos próprios passos, os de quem está ao redor, durante os nevoeiros da existência. Unir um cuidado ao outro, em serena harmonia, traduz a melhor arte, aquela em que o artista e a obra se fundem em um”.

Argumentei que nem sempre era fácil, pois a luta pela sobrevivência e pelos afazeres do cotidiano furtavam um valioso tempo na ajuda pela construção de um planeta melhor. Assim como quase nunca restava condição econômica para colaborar com os mais necessitados. O Velho balançou a cabeça e explicou: “Por mais apressada que seja a sua vida, nada se perderá por esperar alguns segundos na gentileza de permitir ao outro de passar à frente. Por mais vazio que estejam os seus bolsos, um precioso abraço terá sempre o poder de levar a riqueza da vida para alguém que esteja abandonado nos becos da desilusão. Ninguém precisa ser doutor para curar a tristeza de outra pessoa ao ministrar gotas sagradas de alegria e esperança. Uma sociedade mais justa se inicia quando eu, por uma questão de pura consciência, entendo e abdico de qualquer privilégio que alguma legislação anacrônica tenha me concedido indevidamente, causando, de alguma maneira, desigualdade e sofrimento alheios”. Olhou-me nos olhos e concluiu: “Lamentamos a bagunça e o descompasso do mundo, reclamamos por urgentes ações governamentais de amparo e reforma social, enquanto esquecemos da parte que nos cabe, do poder da delicadeza e do perdão no trato pessoal como maneira eficiente de revolucionar a vida. Mudamos o mundo apenas na medida que nos transformarmos naquele cidadão que ansiamos encontrar nas ruas. Nunca na força bruta do discurso vazio e vaidoso, sempre no poder sutil da doce e humilde atitude”.

Sustentei que era muito raro encontrar a bondade nas ruas e disse que achava as pessoas estavam cada vez mais egoístas. O Velho discordou: “Penso que não. Sinto a generosidade por toda a parte, vejo a necessidade incansável pelo amor. Apenas percebo que a maioria não entende a busca. No mais, cada qual tem que fazer a sua parte sem se importar se alguém o seguirá”. Bebeu um gole de café e argumentou: “Ainda que exista aspereza nos relacionamentos, rigidez nos afetos e as pessoas se fechem em si mesmas, mais do que nunca é a hora de oferecer a outra face; a face da luz. De mostrar que tudo pode ser diferente e melhor. Só há uma maneira de iniciar este processo. Através de mim mesmo”.

Questionei o que eu poderia fazer. O monge deu de ombros e falou: “Diga você mesmo”. Falei que não tinha a menor ideia. Ele me fez recordar do Sermão da Montanha: “Conhecemos a árvore pelos frutos. Busque na quietude e na solidão de si próprio a imagem sincera daquilo que tem compartilhado recentemente com os outros. Apenas os seus frutos podem dizer quem você é. Os seus frutos se traduzem nas suas escolhas, das mais simples às mais sofisticadas. São os seus atos e palavras, não apenas nos momentos angulares da existência, mas, principalmente, na convivência simples e, aparentemente, banal do dia a dia. Quais virtudes podemos identificar em cada gesto? O jeito como reagimos a cada negativa ou decepção leva à derrota ou estimula a superação. A maneira como trabalhamos o ego em conjunto com a alma quando alguém se opõe ou atrapalha a conquista de um desejo define quem ainda não somos. A seiva que alimenta a árvore são as ideias e os sentimentos que se refletem no doce ou no amargo dos frutos. Ou mesmo se haverá qualquer fruto. O jardim ou o deserto à nossa volta são apenas consequências naturais da árvore, frondosa ou seca, que nos permitimos ser”.

Nesse instante, um homem de meia-idade, vestindo um terno bem cortado, irrompeu na cafeteria, com passos firmes, carregando uma bonita mala e deixando no ar o rastro do bom perfume que usava. Com a autoridade de quem se acostumou a ser servido, pediu um pedaço de bolo de laranja com gengibre acompanhado de um cappuccino. A garçonete explicou, educadamente, que o bolo ainda demoraria alguns minutos, pois ainda não terminara de assar. Mal-humorado, o homem esbravejou que estava perto da hora do trem chegar à estação e não daria tempo para ele comer. Acrescentou que achava um absurdo o estabelecimento não se preparar para ter todos os produtos à disposição dos clientes logo que abrisse as portas. Disse que o mundo estaria perdido enquanto fosse habitado por pessoas incompetentes e relapsas. A moça ficou com os olhos mareados, mas não disse palavra. Não satisfeito, o homem se virou para a nossa mesa e, em busca de aprovação e aplausos, disse que somente o apocalipse salvaria o planeta; era preciso destruir este para se construir outro. O Velho respondeu com serenidade: “O Apocalipse não trata do final do mundo; é uma imagem de ficção literária destinada a permitir o desembarque daqueles que possuem amor no coração. A viagem, na verdade, já começou há tempos e muitos ainda não percebem que este planeta são apenas os trilhos pelos quais cada maquinista conduz o próprio trem. Outros destinos, bem mais agradáveis, somente são permitidos para aqueles que têm pureza na alma e boa vontade para com os demais passageiros. A viagem é sem fim, mas a mudança de rota é uma escolha hábil, a qualquer momento, para quem traz uma bagagem leve e livre de impostos alfandegários”. Olhou nos olhos do homem e finalizou: “Apenas o amor cumpre tais requisitos”.

O homem mostrou o semblante carregado, girou nos calcanhares e saiu. A moça enxugou a lágrima rebelde e sorriu para o monge em agradecimento. Ficamos mais alguns minutos em silêncio. Depois, pagamos a conta e seguimos para a plataforma. Quando íamos embarcar, fomos surpreendidos pela gentil garçonete que chegou esbaforida. Trazia, com um sorriso no rosto, uma caixa com duas generosas fatias de bolo de laranja com gengibre, ainda quentes, recém-saídas do forno. Perguntei quanto era e a moça se recusou a receber. Disse se tratar de um presente. O monge agradeceu com outro belo sorriso. Olhei para os dois, a moça e o Velho, e foi impossível não lembrar de mais um trecho do Sermão da Montanha. Sem nada dizer, pensei: “Vós sois a luz do mundo!”

 

 

 

 

 

6 comments

Brunão setembro 30, 2017 at 11:24 am

“O jardim ou o deserto à nossa volta são apenas consequências naturais da árvore, frondosa ou seca, que nos permitimos ser”.

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Alexandre Gomes da Silva setembro 30, 2017 at 6:24 pm

Perfeito…..

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Roozely bellei setembro 30, 2017 at 10:05 pm

Maravilhoso.Obrigada

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Francisco outubro 1, 2017 at 6:36 am

Belo ensinamento…

Ser uma pessoa melhor é se nosso responsabilidade, como também é de nossa responsabilidade o quinhão que nos cabe de fazer deste mundo um mundo melhor.

Obrigado!!

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Kadu Rocha dezembro 25, 2017 at 11:37 am

Obrigado por me fazer refletir que a mudança que queremos no mundo começa dentro de nós 😉

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Maura Alves de Brito maio 14, 2018 at 3:59 pm

Parabéns yoskhaz por nós proporcionar tão belas reflexões.
Você é maravilhoso!

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