MANUSCRITOS IV

Olhe com quem andas

 

Eu estava há quase um mês nas montanhas do Arizona, hospedado na casa de Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de transmitir a sabedoria do seu povo através da palavra. Nesse período conheci uma moça que morava na mesma rua e iniciamos um namoro. Beth, como se chamava, era professora em uma escola local. Durante a semana eu me dedicava aos estudos com Canção Estrelada e nos finais de semana íamos, eu e ela, passear nas cidades próximas. Naquele sábado tínhamos ido a Flagstaff. Ainda na parte da tarde, estávamos em uma agradável cafeteria que também oferecia uma ótima cerveja artesanal, ao som de bandas de jazz e blues, quando a minha namorada, ao retornar do banheiro, encontrou uma antiga colega de escola. De longe, observei as duas conversando e percebi as feições de Beth irem se alterando. Tive a nítida sensação de ver uma lâmpada se esvair aos poucos até se apagar completamente. Ao tornar a se sentar ao meu lado parecia outra pessoa. Estava abatida. Perguntei o que tinha acontecido e ela disse que estava tudo bem. Insisti, falei que ela tinha mudado após conversar com a outra mulher. Ela disse que a colega, embora nunca tivessem sido íntimas nem grandes amigas, a abordou para falar da sua vida. Contou muitas vantagens. Um casamento maravilhoso, carros luxuosos, mansões, viagens para lugares paradisíacos e amizades com pessoas famosas foram os tópicos da narrativa. Perguntei a razão de aquela conversa ter mexido com ela. Beth respondeu que não tinha entendido o motivo de a colega ter contado tantas vantagens em tão poucos minutos, mas que ficava feliz por ela. Não demorou muito, fui ao balcão buscar uma cerveja. O lugar estava cheio e quando o barman me entregou a garrafa, um homem, também cliente, a tomou da minha mão. Falou que aquela cerveja era a dele, pois estava ali há mais tempo do que eu. Antes de sair disse um palavrão para mim. Eu não quis esperar por outra cerveja, algo havia furtado a minha alegria. Quando estávamos andando para pegar o carro, encontramos com um rapaz, vizinho da Beth. Nós já tínhamos sido apresentados por Canção Estrelada. O rapaz foi muito atencioso com ela, mas me ignorou por completo. Fiquei desconfortável com a situação, principalmente por ela não ter se posicionado de maneira mais clara a me resguardar diante do comportamento indelicado do rapaz. No carro, de volta para a casa, depois de um tempo sem trocarmos palavra, começamos a conversar sobre um assunto qualquer e quando me dei conta estávamos discutindo. A discussão escalou tons, trocamos acusações e brigamos sério, a ponto de romper o namoro. Tudo aquilo me deixou muito mal; eu me sentia envolvido em uma mistura de emoções, entre a mágoa e a frustração. Uma sensação estranha e ruim, como se eu tivesse permitido que o mel da vida me escorresse pelas mãos. No domingo à tarde, quando Canção Estrelada, ao retornar da viagem que também tinha feito no final de semana, me cumprimentou, respondi de maneira triste. O xamã apenas sorriu de volta. Ao me perceber ainda desanimado no dia seguinte, me convidou para conversar na varanda da sua casa.

Sentado em sua cadeira de balanço, acendeu o fornilho de pedra vermelha do seu inseparável cachimbo. Deu duas baforadas e, em seguida, pegou o tambor de duas faces para ritmar uma sentida canção ancestral. Aos poucos, me senti um pouco mais calmo e receptivo. Canção Estrelada explicou que as boas músicas têm a capacidade de desmanchar algumas formas astrais de baixa vibração que se aproximam por afinidade energética, ainda que momentânea. Em seguida, perguntou o que tinha acontecido e respondi que nada de anormal havia ocorrido. Eu apenas estava quieto. Com sua infinita paciência, ele explicou: “Quietude é diferente de tristeza. Algo fez a sua vibração mudar no final de semana. A energia melhorou um pouco, mas não está boa; precisa ser transmutada. Entender o sofrimento é fundamental para a cura.” Capitulei e contei todos os fatos desde a tarde de sábado. O xamã ouviu sem me interromper. Depois falou:  “Vamos ao início da confusão. O que leva uma pessoa a contar um monte de vantagens ao encontrar outra?” Respondi que talvez fosse para dividir com os outros a sua felicidade. Canção Estrelada balançou a cabeça em negação e disse: “É justamente o contrário. O desconforto não admitido consigo mesmo, com a própria vida, com as escolhas que fez no decorrer da existência são as motivações de tal comportamento. Trata-se do esforço inglório para se convencer feliz. Costuma-se falar das riquezas materiais na tentativa de esconder a pobreza espiritual. Discursos de grandeza revelam almas quebradas ao meio. Nada do que é essencial se consegue com dinheiro e elas percebem isto. É uma busca sentida, mas nem sempre aceita. Como ainda se move no inconsciente, enfrentará dias dolorosos até ser levada e admitida no consciente. Quando, então, poderá realizar as devidas transformações” Questionei se era errado compartilhar a própria felicidade. Canção Estrelada franziu as sobrancelhas e explicou: “Compartilhar a felicidade é dividir o melhor de si com o mundo. Será sempre de muito valor. No entanto, há uma grande diferença entre oferecer o seu melhor e a tentativa de mostrar como a sua vida, ou mesmo você, é melhor do que os outros. Esta é a linguagem do orgulho e da vaidade. Uma pessoa feliz é bem-resolvida, é um ser inteiro. Dispensa qualquer tipo de comparação por se saber bela em razão de ser única; sem negar as dificuldades, sem abdicar das virtudes. Portanto, é simples e humilde, repleta em compaixão. É agradável estar ao lado de uma pessoa assim. A verdadeira felicidade é serena, equilibrada e amorosa. Não carece de propaganda ruidosa.”

Baforou o cachimbo e prosseguiu: “O que leva uma pessoa a se tornar impaciente e violenta como o homem no episódio da cerveja ou intolerante e agressiva como o rapaz que lhe demonstrou desprezo? O deserto do coração ou a falta de rumo. Todo indivíduo que ainda não entende que a vida no mundo é apenas a motivação para o aperfeiçoamento do ser, vagará perdido em constantes desencontros. Todo movimento no sentido de se mostrar maior ou melhor do que os outros refletem uma alma frágil, desorientada, aprisionada pela própria escuridão.”

Falei que provavelmente fomos contagiados pelas sombras dessas pessoas. Isto fez com que brigássemos. O término do namoro era culpa delas. Canção Estrelada discordou: “Claro que não! Elas são quem são. O jeito de ninguém pode ter a capacidade de nos roubar a alegria de viver”. Deu mais uma baforada no cachimbo e explicou: “A vitimização e a transferência de responsabilidade também são sombras igualmente poderosas pela estagnação que impõem. Entender a dificuldade alheia demonstra sabedoria; aceitar as suas próprias dificuldades é o primeiro degrau para a plenitude.”

“No entanto, a batalha delas, se mostra útil a vocês por servir de espelho”. Eu pedi para ele explicar melhor. O xamã aprofundou o raciocínio. “Uma semente, seja qual for, apenas germina quando encontra as condições apropriadas. Assim é com a luz; assim é com as sombras. Ambas precisam de solo fértil para criar raízes. Tudo o que faz morada no seu coração precisa da sua permissão. Quem nos acompanha tem afinidade conosco, está em sintonia com quem somos. Nos episódios do final de semana, se pelo lado deles presenciamos cenas de orgulho e vaidade, do lado de vocês vimos a atuação da inveja e do ciúme. Sombras se nutrem de sombras.”

“Cada pessoa é um centro gerador de energia, movida por suas ideias, emoções e escolhas. As vibrações emanadas se propagam até os confins do universo. Isto nos identifica perante as estrelas.” Tornou a baforar o cachimbo e prosseguiu: “E voltam. Como a vida é amorosa, sábia e justa, somos todos não apenas geradores, mas também receptores das vibrações universais. Captamos as exatas energias na mesmíssima faixa de frequência daquelas que emitimos. Por nós passam as mais diversas energias. Sutis e densas; leves e pesadas; transformadoras e estagnadoras; libertadoras e dominadoras. Cada pessoa define o tipo de energia que ficará ao seu redor. Não por desejo, mas por consequência. É um eficiente método educacional”.

Canção Estrelada tornou a pegar o tambor de duas faces para ritmar uma suave melodia. Deixei-me envolver pela boa música. Aos poucos tudo começou a fazer sentido. Falei ter entendido que eu era responsável por tudo o que me acontecia. De bom e de ruim. Em verdade, no final de semana, eu e a Beth tínhamos cometido o descuido de permitir que as sombras alheias alimentassem as nossas. Ao se agigantarem, trouxeram as brigas. Canção Estrelada aquiesceu com a cabeça e acrescentou: “Somos vítimas de quem somos. Ninguém pode fazer mais mal do que cada um a si mesmo. Entretanto, o inverso também se aplica. O bem está nas minhas mãos, pois se define pelas escolhas que passo a fazer quando altero a rota, na perfeita medida dos meus pensamentos e sentimentos, das virtudes que consigo colocar em ação. Apenas a minha luz é capaz de imunizar as minhas sombras. Toda a plenitude que anseio, manifestada em paz, liberdade, amor, dignidade e felicidade, depende exclusivamente de mim. Este entendimento me dá o poder sobre a minha história. Esta força é inerente a qualquer pessoa. Quando a colocamos em movimento, transformamos a vida. Esta é a magia da luz”.

“Sombras ou luz; as pessoas só têm sobre nós o poder que concedemos a elas. Sombras e luz se manifestam em nós na exata afinidade que temos com elas. A vida é como um rádio; ao mudar a sintonia, alteramos a programação”

Pedi licença ao Canção Estrelada. Eu precisava conversar com a minha namorada e mostrar a armadilha na qual tínhamos sido aprisionados. O xamã apenas sorriu com os olhos em resposta. Quando cheguei na casa de Beth, informaram que ela estava na pequena igreja da cidade. Dirigi-me para lá. Ao entrar, a vi sentada na primeira fila. Sentei na última fileira de bancos para esperar o final da missa. O padre falava de uma das Cartas de Paulo, o apóstolo dos comuns, na qual citava um verso de Menandro, um poeta da época: “Não vos deixeis enganar: ‘más companhias corrompem bons costumes’”. Em seguida, explicou que não importava se estávamos ao lado de fulano ou de beltrano, mas se nos fazíamos acompanhar de sombras ou de luz. Exemplificou que mestre Jesus se tornou amigo de ladrões e prostitutas e, sem se deixar envolver pelas sombras, os trouxe à luz. Ele transformou o seu encontro com Pilatos, apesar de toda a escuridão que envolvia o governador romano, em um momento de iluminação capaz de inspirar os passos da humanidade até os dias de hoje. Com os olhos mareados, fiz uma prece sentida de agradecimento pelos mestres ocultos, porém presentes, em todas as horas da minha vida; pela sábia, justa e amorosa sincronicidade do universo. Ao final da missa, quando me viu, Beth me ofereceu um sorriso doce e piscou o olho como quem diz saber o motivo pelo qual eu estava ali. Trocamos um forte e inesquecível abraço. Não foi preciso palavra.

 

 

16 comments

Jefferson fevereiro 3, 2018 at 7:48 pm

Suas palavras são um refresco para a Alma, que anseia com saudades de casa.
GRATIDÃO por cada história!!

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Adélia Maria Milani fevereiro 4, 2018 at 1:55 pm

Gratidão!

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Roozely bellei fevereiro 4, 2018 at 2:07 pm

Obrigada por sábias colocações
.Adoro ” navegar” por e com ela.Obrigada

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Rita Soares fevereiro 4, 2018 at 9:33 pm

Lindo… Tão simples, mas tão profundo… 🙂

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Jeffty Lira fevereiro 5, 2018 at 12:09 am

Texto lindo, nunca tinha parado para pensar assim

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Viviane Barbosa fevereiro 5, 2018 at 9:52 pm

Nossa! Muito interessante saber que somos responsáveis pela energia que estamos vibrando.
Gratidão infinita.

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HélioDauto fevereiro 6, 2018 at 2:44 pm

Muito bom…
Temos que estar antenados nas nossas vibrações, pois as emitimos e recebemos por ressonância, e assim nos sintonizamos com nossas sombras ou com nossa luz.
Todo buscador tem o dever de faze lo de forma consciente de tal forma que sempre ofereça seu melhor!

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Maria cleusa fevereiro 7, 2018 at 8:08 pm

Gratidão pelas mensagens maravilhosas!!!

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Ana fevereiro 7, 2018 at 8:21 pm

Maravilhoso!

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celina fevereiro 14, 2018 at 3:46 pm

Nunca imaginava que eu mesma transformasse em luz ou sombras os meu dias.É preciso realmente saber tb com quem relacionamos para que sejamos sempre luz….amei isso aqui.Me tocca claramente como eu devo ser e proceder.
Sejamos sempre luz!!!!

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Roberto Pires fevereiro 28, 2018 at 9:34 am

Outro excelente texto, parabéns. Em resumo, evoluir é iluminar nossas sombras.

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Romario Sales março 26, 2018 at 6:51 pm

Grato por compartilhar!

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Dai abril 14, 2018 at 11:53 am

Gratidão por todos os textos, por todos os conjuntos de palavras que sempre enchem o peito!

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Brunão maio 24, 2018 at 1:43 am

“A vida é um eco, se você não está gostando do que está recebendo, observe o que está emitindo.” (Provérbio indiano)

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Márcia Campos maio 25, 2018 at 9:12 pm

“Diga-me com quem andas que lhe direi quem és’
Amei o Conto Yoskhaz, repleto em sabedoria transmitida sabiamente!

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Laura Di Paula agosto 2, 2019 at 11:27 pm

Como é benéfica a luz do entendimento …do aprendizado nosso de cada dia! E como faz falta a aptidão pelo saber, pelo conhecer a fundo nossas tendências, nossas fraquezas e nosso potencial de melhoria íntima… Gratidão, Yoskhaz !!🙏🏼

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