MANUSCRITOS IV

O elogio e a trilha para o precipício

Eu tinha descido a montanha que acolhe o mosteiro para esfriar a cabeça e colocar as ideias no lugar. Quando cheguei à pequena e charmosa cidade localizada logo abaixo, fui procurar Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos. Eu precisava desabafar. Encontrei o meu amigo em sua oficina. Fui recebido com um sorriso sincero e um forte abraço. Ele encerrou o expediente daquele dia, pediu para eu me sentar ao lado do antigo balcão de madeira e foi buscar duas canecas de café fresco. Ao notar pelo meu semblante que algo não estava bem, pediu para que eu abrisse o coração. Assim, explicou, eu colocaria para fora tudo o que me incomodava. Depois, com o filtro da consciência serena, apenas traria de volta ao coração o que fosse bom e valioso. Expliquei o que tinha me chateado no mosteiro. Surgira uma vaga para ministrar um curso que a Ordem oferecia todos os anos para o público externo, que consistia em uma série de palestras e vivências com o intuito de aumentar a percepção do sagrado que habita em todas as pessoas. Francis, um culto monge da Ordem, me procurou para falar que, por justiça, aquela vaga deveria ser minha. Elogiou os meus notáveis avanços nos estudos, a minha boa oratória, a excelente capacidade de raciocínio nos debates. Segundo ele, não havia monge – como denominamos todos os membros da Ordem – mais capacitado do que eu para assumir o cargo e que eu deveria requisitá-lo para mim. Acrescentou que, sob a minha coordenação, o curso galgaria patamares de excelência. Aconselhou-me a procurar o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, a quem cabia a decisão, para uma conversa franca sobre o assunto. Confessei que, a princípio, eu não tinha pensado nisso. Porém, analisando as palavras de Francis, me convenci que eu era a pessoa certa para exercer a função. Procurei o Velho e me candidatei ao cargo. Ao percebê-lo reticente, usei como argumento a minha trajetória de estudos e desenvolvimento dentro da Ordem. Ele respondeu que pensaria com calma sobre o assunto e, quando estivesse seguro quanto à escolha que faria, me avisaria. Tamanha expectativa ocupou a minha mente nos dois dias e duas noites que se seguiram. Como ainda não havia uma decisão, tornei a procurar o Velho e o pressionei a decidir. Insisti em lembrá-lo das minhas qualificações; afirmei, sem qualquer dúvida, que eu era a pessoa mais preparada para dirigir o curso. O Velho ouviu com paciência, sem me interromper. Ao final, disse que outro monge também tinha se candidatado para o cargo, com uma postura bem diferente da minha, sem nenhuma arrogância e muita humildade. Confessou que estava bastante inclinado a decidir em favor desse outro monge. Todos sabiam do valor que o Velho atribuía a virtude da humildade. Por uma fração de segundo, um pensamento assustador me ocorreu. Perguntei quem era o monge. Francis, foi a resposta.

Desorientado, fiquei sem palavra. Pedi licença e saí do gabinete do Velho. Depois de passar a noite sem dormir, na manhã seguinte avisei que passaria alguns dias fora do mosteiro. Agora eu estava ali, na oficina de Loureiro, diante do meu amigo. Confessei que apenas uma ideia me ocorria: pedir o meu desligamento definitivo da Ordem. Eu não conseguiria conviver com tamanha injustiça. Aleguei que, embora Francis fosse um homem culto, as minhas qualificações iam bem além das dele. O próprio Francis tinha me revelado isso.

Loureiro, que tinha ouvido todo o relato sem interromper, bebeu um gole longo de café e disse: “Penso que o caso merece uma ótica diferente da qual você se permite. Parece-me que existe algo oculto, difícil para você admitir”. Interrompi dizendo que tudo me parecia claro como uma manhã de verão. O sapateiro me lembrou de um ensinamento que ele próprio já tinha me oferecido, mas naquele momento eu não tinha condições de lembrar: “Diante de um conflito temos a opção de olhar como quem olha para um problema. Então estaremos diante de um problema. Entretanto, podemos ver a situação como uma lição disponibilizada pela vida. Neste caso ficaremos frente a frente com um mestre. Quando devidamente aproveitada, o resultado nos trará transformação pessoal e inevitável evolução”.

Belas palavras, porém, vazias, comentei. Loureiro, sem se permitir a provocação, como um bom amigo, entendia e mostrava paciência com a alteração do meu humor. Ele me fez um convite: “Vamos andar enquanto continuamos a conversa?”. Flanar pelas ruas sinuosas e estreitas daquela bela cidadezinha, calçada com pedras seculares, sempre era prazeroso. Apesar do frio típico do outono, aceitei a proposta. Logo que começamos a andar, Loureiro me pediu para contar mais uma vez todo o ocorrido. Em verdade, ele queria que eu ouvisse as minhas palavras, que eu fosse o expectador do meu próprio discurso. Como eu sentia uma enorme necessidade, ainda que inconsciente, de expurgar as emoções densas que me adoeciam, relatei de novo todos os fatos e, de sobra, argumentava sobre cada episódio. Sempre ressaltando a injustiça da qual eu era vítima e a vontade de me desligar da Ordem. Sem me dar conta, enquanto andávamos, eu repeti a história e os argumentos muitas vezes. Na medida em que eu comecei a me ouvir percebi que havia algo de errado, algum argumento que aos poucos tirava a força e o sentido da narrativa. Contudo, eu não conseguia, ou não queria, identificar o cerne da questão

Andamos por um tempo que não sei precisar. Falei, falei e falei. Loureiro apenas ouviu. Quando surgiu um momento de silêncio, em que eu me mostrei cansado de mim mesmo, ele me convidou para um café com pão quente em uma padaria próxima. Devidamente acomodados em uma mesa próxima à janela, ele me perguntou: “Você se declarou injustiçado várias vezes. Todavia, você consegue ver algo diferente ou além da injustiça?”. Balancei a cabeça em anuência. Uma armadilha, foi a minha resposta.

Eu tinha me deixado enfeitar pelos elogios com que o Francis me coloriu. Sem a devida prudência, me deixei levar à beira do precipício. Ao exaltar tais elogios, despenquei. Pois me tornei um mau candidato ao cargo no qual a humildade era primordial. Isto pavimentou as chances do Francis ao se apresentar ao Velho de maneira maquiavelicamente estudada.

O sapateiro arqueou os lábios em leve sorriso como quem diz que eu começava a transformar o problema em lição. Todavia, eu estava longe de conseguir um bom resultado, pois, em seguida comecei a falar de como Francis era um infame, um homem perigoso, um traidor. Eu iria me afastar definitivamente dele. Cogitei levar para o Velho as artimanhas de Francis para conquistar o cargo. Solicitaria a sua expulsão da Ordem por comportamento vil. Loureiro me olhou profundamente antes de ponderar: “Sem dúvida que houve uma armadilha. Mas qual foi a isca usada para te aprisionar?”. A maldade de Francis, respondi. O sapateiro sacudiu a cabeça para dizer que a resposta estava errada e sugeriu: “Pense e tente de novo.” Embora eu tentasse evitar a verdade, para ser sincero comigo e honesto com ele, eu tinha que admitir o que, em verdade, me doía. Abaixei os olhos e confessei que a isca que me prendera na armadilha tinha sido o meu orgulho e a minha vaidade.

Contudo, insisti que não se poderia negar a maldade do Francis, sem a qual nada daquilo teria acontecido. Loureiro me colocou diante do mestre que habita em todos nós: “A maldade do Francis pertence ao Francis. Sozinha, ela não teria nenhum poder. Salvo se você aceitasse o convite para dançar com ela, atraído pelos seus sedutores elogios. Os elogios costumam funcionar como um imã para as sombras do orgulho e da vaidade”. O garçom trouxe as xícaras de café acompanhadas de um delicioso pão coberto com uma generosa fatia do bom queijo da região. Tudo bem quentinho. Loureiro bebeu um gole e aprofundou o raciocínio: “Por todo o tempo você fugiu à responsabilidade. Ora alegando injustiça; ora, a traição ou a maldade de Francis. Se você não se movimentasse impulsionado pelos conselhos da vaidade e do orgulho, não haveria conflito nem precipício e queda; a armadilha seria inócua, a maldade do Francis se consumiria nele mesmo. Se bem conheço o Velho e o seu apurado senso de justiça, diria que as chances de você alcançar o almejado cargo seriam enormes. O silêncio da humildade fala mais alto do que os gritos do orgulho; a luz da simplicidade tem alcance infinitamente maior e mais duradouro do que o brilho da vaidade. Enfim, se houve conflito foi porque você o chamou para si; se houve queda foi porque você se lançou no precipício; se houve frustração na sua caminhada, neste caso, foi em razão da utilização dos instrumentos inadequados para o correto avanço. Não há evolução sem o exercício das virtudes; não existe vitória fora da luz”.

Comentei que eu tinha sido ingênuo demais. Loureiro me corrigiu: “Enquanto você se recusar a olhar no espelho da verdade, perdido por não entender nem sua força nem a sua fraqueza, ficará aprisionado na cela da própria vitimização. Sem o orgulho e a vaidade como seus conselheiros, nada disso teria acontecido. Enquanto você se olhar como uma mera vítima da maldade alheia não conseguirá avançar nem transmutar a dor.”

“O aspecto mais interessante é que somos condicionados a usar o orgulho e a vaidade pela sensação de poder que proporcionam. Quando, em verdade, são exatamente essas sombras que nos fragilizam. Foi exatamente nesse ponto, por te iludir poderoso, que o Francis te aprisionou. O que te derrotou não foi a maldade do Francis, mas as tuas próprias sombras. A tua fraqueza foi a tua ilusão de força. Entender isto, com amor e sabedoria, é o primeiro passo para se transformar e se fortalecer para os dias que virão”.

“Da mesmíssima maneira ocorre com as ofensas. Somente conseguimos ofender aos que, inflados pelas sombras vulgares do orgulho e da vaidade, se acreditam melhores do que os outros, que pensam que o respeito vem dos outros e não do conhecimento que se tem sobre si mesmo. Não entendem que as ofensas falam mais sobre o coração do remetente do que a personalidade do destinatário”. 

Mordeu uma fatia de pão com queijo e prosseguiu: “O Francis, como um bom mágico, o enganou com o hábil jogo das sombras. O truque apenas foi possível porque você quis acreditar nele, por fazer bem ao seu ego que, nessa situação, se mostrou imaturo. Quando se iludiu poderoso você mostrou o quanto era vulnerável”. Interrompi para dizer que nunca mais acreditaria em um elogio. Loureiro franziu as sobrancelhas como quem está diante de uma criança inconformada e disse: “Não precisa caminhar pelas raias da infantilidade nem do radicalismo. Nem todo elogio é sincero assim como nem toda a crítica é justa. Quando entendemos quem somos, já desenvolvemos bons níveis de humildade, simplicidade, compaixão e sinceridade. Assim, temos condições de discernir o valor contido em cada palavra dirigida a nós; aproveitando o conteúdo amoroso, dispensando os frutos da ignorância”.

Falei que tinha sido uma boa lição. Loureiro perguntou como seria o meu relacionamento com o Francis dali para frente. Confessei que não tinha bons sentimentos em relação a ele. Sim, eu estava magoado. O sapateiro bebericou o café e disse: “A lição ainda não terminou. Apenas o perdão encerra esse processo”. 

“Entenda que você e o Francis foram aconselhados pelas mesmas sombras. Ambos foram movidos por orgulho e vaidade, cada qual a sua maneira. Lei da Afinidade; essa foi a sintonia que os aproximou e os envolveu. Isto o torna mais parecido com o Francis do que você gostaria neste momento. No entanto, também pode te ajudar. As sombras dele permitiram que você descobrisse o grau de envolvimento que tem com as suas. Isto vai possibilitar, caso trabalhe nesse sentido, a transmutar o orgulho em humildade, a vaidade em simplicidade e, então, avançar. Agradeça a ele. O Francis, ainda que de modo involuntário, através das sombras, se tornou um mensageiro da luz. É o precipício que nos faz descobrir o valor de aprender a voar”. 

Esvaziou a xícara de café e concluiu: “O perdão é o final iluminado de todas as histórias por libertar os personagens envolvidos na trama. Mais ainda, o perdão cura o mal que nos corrói. O perdão é primordial para os voos mais altos, não apenas por nos desamarrar do chão ou por nos tornar leves ao esvaziar a bagagem desnecessária que teimamos em carregar, mas, principalmente, por nos fazer entender o perfeito tamanho das nossas asas”. 

Passei dois dias na pequena cidade em meditação e reflexão. Ao final, retornei ao mosteiro. Procurei o Velho e admiti que eu ainda não estava pronto para dirigir o curso. Pedi desculpas pela inadequação das minhas palavras durante a conversa que tivemos dias antes. Nada falei sobre o Francis. Ele sorriu com a doçura de um pai. Sem que eu perguntasse, comentou que o cargo ficaria sob responsabilidade de Bartolomeu. Um monge que não o havia reivindicado.

16 comments

Claudia Pires março 29, 2018 at 7:35 pm

Seus manuscritos são carregados de iluminação. Grata sempre!

Reply
Vanessa Luana Elias Ferreira março 30, 2018 at 3:53 pm

😍

Reply
Rosana março 30, 2018 at 6:15 pm

Luz. Simplesmente luz.

Reply
dra mab davilla roberts março 30, 2018 at 7:04 pm

maravilhoso obrigada – gostaria de saber de onde es e como es
onde moras?

Reply
João Ricardo março 30, 2018 at 9:34 pm

Que frase: “É o precipício que nos faz descobrir o valor de aprender a voar.”
T.’.F.’.A.’.

Reply
Roberto Pires março 31, 2018 at 11:35 am

O ego, sempre ele. Indomável, nosso maior adversário. Excelente texto, sempre.

Reply
Joane março 31, 2018 at 7:55 pm

Gratidão 💗

Reply
Adélia Maria Milani abril 1, 2018 at 9:35 pm

Muita luz em suas palavras! Gratidão

Reply
Michael abril 3, 2018 at 8:31 am

Quanto aprendizado, quanta luz! Obrigado

Reply
Ailton abril 3, 2018 at 12:02 pm

Todos os textos orientam para melhoria como pessoa para aprender com as fases inevitáveis, evolução do ser para se transmutar. Parabéns!!!

Reply
Augusto Xavier abril 5, 2018 at 9:51 am

Grato pelo texto amigo, muita luz.

Reply
Marcos abril 5, 2018 at 10:43 pm

Ótimo! Mais um aprendizado de suma importância para nossas vidas!

Reply
Romario Sales abril 7, 2018 at 11:57 am

“O silêncio da humildade fala mais alto do que os gritos do orgulho.”
Quanta reflexão seus textos nos trazem.
Obrigado por compartilhar!!

Reply
Marise dos Santos Gonçalves abril 9, 2018 at 9:15 am

Iluminar nossas sombras através do conhecimento auxilia a Humanidade que existe em cada um de nós!!! Obrigada.

Reply
Jailson abril 11, 2018 at 9:39 pm

Padecemos por falta de conhecimento!
Ao procurar nos conhecermos estaremos percorrendo um caminho de transformação de nossa essência humana, avistando nossas sombras e transformando-as em luz.
Grato!

Reply
MARCELO AUGUSTO G. DE SOUZA julho 15, 2020 at 2:10 pm

Escrever com o coração é uma arte e uma virtude juntas, elas se completam!

Reply

Leave a Comment