MANUSCRITOS IV

O Segundo Portal – Os Oito Portais do Caminho

 

Eu estava sob o encanto de ter descoberto o mapa para conhecer os oito portais do Caminho; as etapas a serem superadas na estrada para a luz. Embora eu imaginasse que tamanho conhecimento apenas fosse possível a círculos iniciáticos e esotéricos fechados, em verdade, há muito tempo estava disponível para toda a humanidade em um livro de fácil acesso. Há dois mil anos esse conhecimento pulsa de maneira simples e humilde, amorosa ao extremo, ao jeito do Mestre, à espera de todas as pessoas em um dos textos mais belos e profundos já redigidos: o Sermão da Montanha. As bem-aventuranças, onde são elencados os oito portais, é um pequeno trecho contido logo na abertura do Sermão que, por sua vez, integra o Livro de Mateus, uma das quatro Escrituras que compõe a parte renovadora da Bíblia. No entanto, é preciso “olhos de ler” para mergulhar em todas as possiblidades de expansão consciencial oferecidas por aquelas palavras. O Sermão da Montanha, mormente as bem-aventuranças, não pode ser lido em sua literalidade, nos estreitos limites dos vocabulários, porém em sua intimidade, com a proximidade da alma e das suas lentes apuradas, para que possa ampliar as fronteiras da percepção sobre quem eu sou e quem eu posso vir a ser, na exata medida que entendo a importância do outro em minha vida. Ao compreender que as dificuldades existem para impulsionar o meu processo evolutivo, consigo alinhar na luz os opostos que me habitam para, então, alcançar a plenitude, composta pelas riquezas imateriais da liberdade, da dignidade, da paz, da felicidade e do amor incondicional. Uma riqueza maior que não encontrarei em nenhum lugar do mundo salvo dentro de mim mesmo; herança única e imperecível que poderei levar na bagagem para as Terras Altas. O Caminho da Luz não é uma estrada que se percorre mundo afora, é uma viagem que se faz universo adentro. Nem por isto menos fácil. Quando iniciada, revela o poder incomensurável contido na sabedoria de descobrir que “sempre tenho tudo o que preciso”. Isto é sagrado por se tornar libertador. Em contrapartida, o mundo é o deserto que ajudo a transformar em jardim na medida das virtudes que florescem no âmago do meu ser através das escolhas que faço.

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, há dias tinha me revelado o Primeiro Portal, o portal da lucidez, e sobre as virtudes que lhe são inerentes, sem as quais não conseguiremos atravessá-lo para seguir rumo à próxima etapa. O Segundo Portal está codificado da seguinte maneira: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.”

Eu tinha lido e relido várias vezes, refletido e meditado, sem conseguir achar a chave para abrir essa porta. Comecei a procurar pelo Velho em todos lugares do mosteiro em busca de auxílio. Vagava sem sucesso pelos corredores, salas, biblioteca, refeitório e jardins. A cada pessoa que eu encontrava, recebia diferente resposta de onde ele poderia estar. Quando lá chegava, ele não mais estava. Eu prosseguia em minha peregrinação atrás do Velho, quando fui interceptado pelo Lucca, o monge responsável pelos famosos chocolates fabricados no mosteiro e fonte de subsistência da Ordem, uma vez que doações não são aceitas. Ele me informou que um casal tinha nos procurado em busca de ajuda. A filha deles tinha falecido em um acidente automobilístico, o que os deixara desorientados e envolvidos em muita dor. Falei que estava ocupado e pedi que ele transferisse o atendimento a outro monge, como denominamos todos os membros da irmandade. Lucca me explicou que não podia fazer isso, pois havia sido o Velho que me indicara para conversar com os pais da moça. Como decano e orientador pedagógico da Ordem, as diretrizes do Velho apenas poderiam ser mudadas por ele mesmo. Argumentei que o Velho sempre fora flexível e generoso com as nossas sugestões. Não raro as modificava aos nossos pedidos. Lucca concordou comigo, mas lembrou que a decisão não podia ser sua, apenas do Velho. Contrariado, segui para a sala onde o casal aguardava.

Como eu esperava, encontrei um pai e uma mãe transtornados. Percebi que aquela conversa iria demorar. Disfarcei para esconder a minha impaciência por estar com eles. Eu queria terminar logo para voltar aos meus estudos. Eu estava ali, mas o meu coração não estava. Apresentei-me aos pais com polidez como recomenda a boa educação, ofereci os meus pêsames de maneira formal e sentei ao lado deles. Quando íamos começar a conversar fomos interrompidos pela chegada do Velho, com seus passos lentos, porém firmes, com o devido apoio da bengala. Sem dizer palavra, deu-lhes um abraço forte e demorado. Os olhos do monge brilhavam diferente; era bondade pura e sincera. O ambiente da sala se transformou de imediato. Ele disse para os pais: “Já enfrentei uma tempestade parecida a essa e sei que não é fácil. Mas sei que é possível sobreviver e aprender a navegar melhor” A mãe, aos soluços, tornou a abraçar o Velho por um longo tempo. A solidariedade os aproximava. O Velho deixara claro que não tinha pressa e que teria toda a serenidade necessária. Tinha ficado claro que o monge estava ali por amor e isto, além de claramente perceptível, fazia uma enorme diferença. Em seguida ele disse com doçura: “Gostaria de conhecer mais sobre a filha de vocês. Podem me contar?”

Por mais de uma hora ouvimos os pais, com lágrimas nos olhos, falarem sobre a filha que partira, das memórias vivas que pulsavam e da saudade que lhes dilacerava as almas. Depois, com muita delicadeza, o Velho ofereceu o olhar que temos na Ordem sobre a morte, não como um fim, mas como a mudança do rumo de uma viagem que precisa prosseguir para outras esferas de vida, na continuidade da educação evolutiva. A morte vista não como uma perda, porém como uma sábia e amorosa transformação. Falou, também, que a saudade deveria ser vista como algo bom, por ser o testemunho do amor, tesouro puro e imperecível. Contudo, ele sabia que naquele instante as suas palavras sofreriam natural resistência em razão do condicionamento físico e material que costumamos ter em relação à vida. Mas sabia também que a boa semente não se perde, apenas aguarda com paciência a fertilização do solo para germinar. Aqueles pais precisavam, como na maioria dos casos, extravasar os seus sofrimentos para não explodirem em dor. Por isto ele os deixou falar; por isto, ele os ouviu sem o menor resquício de pressa. De vez em quando o monge entremeava a narrativa dos pais com uma boa palavra, no exato tempero entre a doçura e a firmeza, para de um lado acalentar os corações, de outro, alimentar-lhes a esperança quanto à vida. Na escuridão do momento, ele lhes oferecia, em gotas, a outra face da vida. A face da luz.

Aos poucos, apesar da tristeza que demoraria muitos dias para ser transmutada, o ambiente pesado do início deu lugar a uma perceptível leveza no ar. Então, o Velho os convidou para tomarem conosco um café com bolo na cantina do mosteiro. Brincou que era uma experiência gastronômica inesquecível e, portanto, não aceitava recusas. Envolvidos em tanto carinho e compreensão, cada um deles se enlaçou em um dos braços do Velho e seguiram os três até a cantina. Eu fui atrás. Outros monges chegaram até onde estávamos e abraçaram amorosamente os pais. Sentaram-se à mesa. Juntos, conversamos sobre vários assuntos relacionados à viagem da filha. Muitas histórias foram contadas, todas com uma mensagem de luz embutidas em seu teor. Ao final, por algumas vezes, vi os pais esboçarem sorrisos. Embora tímidos, eram sorrisos que inexistiam quando ali tinham chegado. Quando partiram, algo de bom restara semeado em seus corações.

Os outros monges retornaram aos seus afazeres. Restamos nós, eu e o Velho, sentados à mesa. Ele se virou e perguntou: “Entendeu o Segundo Portal?” Somente, então, comecei a ligar uma coisa a outra. “Bem-aventurados os que choram, eles serão consolados”, ele me lembrou. Contudo, falei que não conseguia fazer todas as correlações necessárias entre o fato que acabara de presenciar e a lição milenar para o seu perfeito entendimento. O Velho disse: “Assim como o Primeiro Portal é o da lucidez, no qual para atravessar se faz necessário entender quem ainda não somos, autorizado para aqueles já despidos de vaidade e orgulho, o Segundo Portal é o da bondade, somente permitido aos jardineiros do mundo. Para entrar é preciso usar o próprio coração como semente para germinar flores no deserto de outro coração.”

Encheu a minha caneca com café e brincou dizendo que era para me ajudar a pensar. Levantou-se e falou para eu me esforçar para entender. Pois era condição indispensável: “Como atravessar uma porta se não conseguimos vê-la?” Disse antes de sair.

Sozinho, comecei o trabalho de ligar todos os pontos para conseguir visualizar o todo. Eu já sabia que para atravessar cada um dos portais era necessário sedimentar um grupo de virtudes. Então, comecei a rememorar os acontecimentos daquele dia para perceber quais virtudes afloravam dos fatos que eu havia presenciado. Os pais da moça choravam e foram consolados. Quais virtudes eram possíveis extrair daquelas lágrimas? Ora, chorar por quem amamos é como gostar de quem nos ama, é como fazer o bem às pessoas queridas; não há maiores virtudes nisto. Eu não conseguia ligar o fato à lição. Eu me esforçava para lembrar do sofrimento daqueles pais na tentativa de decifrar o enigma. Em vão.

Um longo tempo se passou. Esvaziei a caneca de café sem que eu conseguisse avançar na lição. Estava prestes a desistir quando as palavras do Velho me vieram à mente: “É preciso usar o próprio coração como semente para germinar flores no deserto de outro coração” Sim, era isso! Era necessário que o meu coração promovesse o alívio e a cura no sofrimento de outro coração. Bem-aventurados os que choram, não as suas próprias dores, pois nisto, embora compreensível, não reside nada de extraordinário. Bem-aventurados os que têm a sensibilidade de sentir o sofrimento alheio e, no limite das suas verdadeiras possibilidades, se esforçar para atenuá-lo. Estes receberão o abraço maior, o mais bonito de todos os sorrisos.

A partir desse ponto, o Segundo Portal começou a se desenhar com incrível clareza. Naquele dia eu tinha assistido à manifestação de muitas virtudes, mormente por parte do Velho. Generosidade, doçura, solidariedade ânimo, paciência e gratidão, eram as virtudes que se fizeram presentes. Recordei-me dos atributos de cada uma delas.

A generosidade é a virtude daqueles dispostos a compartilhar o que têm de melhor para ajudar os outros. Seja nos aspecto material, seja no espiritual. Um abraço costuma ser mais valioso do que um cheque. São aqueles que se preocupam com os outros, são os que socorrem; são os sensíveis. São os semeadores de amor.

A solidariedade é a virtude de suprir a falta alheia; é sentir a dor do outro e se recusar a cruzar os braços. É a virtude daqueles que, por terem o coração do mundo em seu próprio coração, praticam o bem ao outro como quem o faz a si mesmo. A solidariedade se diferencia da generosidade quanto ao momento. Enquanto esta está sempre disposta a acolher o outro, aquela vai em busca das carências do mundo para supri-las antes mesmo que lhe peçam. Os solidários ensinam ao mundo que o sorriso é possível; são os arquitetos da esperança

A doçura, a gentileza e a delicadeza são as virtudes em que mostro a qualquer pessoa a enorme importância que ela tem para mim e para o mundo. São virtudes típicas daqueles que plantam flores pela alegria de embelezar a estrada para os outros caminharem. São os que se recusam a ser causa de qualquer dor; se negam a frieza e a indiferença no trato com toda a gente. São os construtores das pontes que aproximam todos os corações do mundo.

O ânimo é a vontade de movimentar todas as virtudes; pois não basta sentir, é preciso realizar. São os motores que nos impulsionam para o abraço com a vida.

A gratidão é a virtude de reconhecer a beleza do outro. É típica daqueles que olham o mundo pelas lentes da luz. São capazes de enxergar o melhor que existe em cada coisa, pessoa e situação. São aqueles que nos ajudam a nos tornar um bom lugar para morarmos.

Tornei a encher a minha caneca com café e me levantei. Fui para a varanda do mosteiro. Sentei-me em uma poltrona para apreciar as montanhas. Na verdade, eu estava encantado com as maravilhas que o Segundo Portal me oferecia. Naquele momento pude perceber as possibilidades que se abriam para todos que ousassem a atravessá-lo. Ele era o chamado para o aperfeiçoamento da Obra através do aprimoramento íntimo. Atravessar o portal é aceitar a coautoria deste desafio. Tudo que está em você reflete no outro; as sombras e a luz. É o entendimento de que o outro é a face ainda desconhecida do todo do qual fazemos parte. É o olhar para si para ver além de si mesmo. “Seja o mundo que você deseja” já não é mais uma ideia, mas uma escolha. É a consciência e o exercício de fazer parte indissociável de algo maior. Para atravessar o Segundo Portal é preciso sentir a alma do mundo pulsando na própria alma. Em seguida, acalentá-la.

O Segundo Portal não fala do choro quanto às próprias dores, mas quanto às dores alheias. É sentir o outro em si… e o envolver com amor. Somente então, será permitido atravessar a porta.

Com sinceridade, pelo meu comportamento naquele dia, admiti que a porta ainda estava fechada para mim. Contudo, me alegrei por conseguir vê-la. Generosidade, doçura, solidariedade, ânimo, paciência e gratidãoeram as virtudes que eu precisava sedimentar em mim se eu quisesse atravessar o Segundo Portal do Caminho. Agora era travar a luta interna para que, em um dia qualquer do tempo sem fim, eu fosse merecedor em entrar por essa porta. É preciso avançar na estrada na luz.

 

 

14 comments

Cleide lima abril 11, 2018 at 12:42 pm

Bom dia,
Teria algo sobre o livre arbítrio, alguma conversa com o Velho ? Adoraria entender perante a sabedoria dele…

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Yoskhaz abril 12, 2018 at 8:20 am

Bom dia, Cleide!

Sim, há vários textos nos quais ressaltamos o poder das escolhas. Inclusive com o Velho. Escolha um… ou todos!

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Jefferson abril 11, 2018 at 3:01 pm

GRATIDÃO!!
Abençoados sejam os seus passos!!

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Adélia Maria Milani abril 11, 2018 at 11:47 pm

Gratidão! Gratidão pela sabedoria ditribuida em sementes de puro amor.

Vc deve ser um espírito muito evoluído e todos deveriam beber dessa fonte. Gratidão.

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Lygia Carla Marassi abril 12, 2018 at 7:06 am

Mais uma vez, ensinamentos indispensáveis e de uma forma que incrível. Muito obrigada 🙏 amo seus textos e as mensagens neles contidas. Que Deus o abençoe

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Vivi abril 12, 2018 at 7:05 pm

Muito grata por ter acesso a toda essa riqueza!

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HélioDauto abril 12, 2018 at 10:26 pm

É moço…yoskhaz, quanta luz irradiada nestes parágrafos… é muito bom ver também quantos já se interessam por fazer a grande jornada da alma! estamos vivendo mementos impares na nossa jornada assim como também no nosso humilde planeta!

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Marise dos Santos Gonçalves abril 14, 2018 at 9:15 am

Gratidão pelo ensinamento de Luz e Proteção!!!

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Joane abril 18, 2018 at 6:02 am

Gratidão 💗🌹

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Márcia Campos maio 14, 2018 at 10:55 pm

Abraço Yoskhaz

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Romario Sales maio 21, 2018 at 9:49 pm

Obrigado por compartilhar mais esse ensinamento.

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Brunão junho 25, 2018 at 6:34 am

Empatia.

Gratidão!

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ELAINE dezembro 6, 2018 at 12:32 pm

Maravilhoso!!!

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Elba Fonseca Campos fevereiro 22, 2019 at 2:39 pm

Boa tarde abençoada com muitas bênçãos de luz!!
Há muito estudo os seus textos, e a cada leitura e reeleirura vejo o quanto temos a aprender e sobretudo vivenciar com a alma.
Aprecio e oriento a muitos a estuda-los.
Obrigada por compartilhar tão elevadas lições!

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