MANUSCRITOS IV

Plenitudes – a liberdade

Acordei um pouco mais tarde do que o habitual. Já não daria tempo de tomar um chá com Li Tzu antes de iniciar as atividades em sua casa, que começavam logo cedo com aulas de ioga e meditação, antes de ele começar a falar sobre o Tao Te Ching. Tínhamos iniciado uma série de conversas sobre as plenitudes na tentativa de eu começar a entender conceitos com tamanha amplitude. Decidi, então, aproveitar a linda manhã de sol, que ajudava a afastar, ao menos um pouco, o frio constante nas montanhas, para passear. Tinham me indicado visitar um bosque onde havia raras orquídeas selvagens, impossíveis de serem mantidas em cativeiro, mesmo diante das técnicas mais avançadas de jardinagem. Segui a trilha na montanha. Passei por lugares cuja beleza era difícil de traduzir em palavras. Éramos apenas a natureza e eu, à medida que eu andava aumentava uma agradável sensação de bem-estar. Tudo ali me era permitido; não havia ninguém a me impedir qualquer gesto ou ação. Sentia-me livre como há muito tempo não me recordava. Os meus pés pareciam não tocar no chão tanta era a leveza que me envolvia. Não menos bonito era o bosque com a tais orquídeas selvagens. Eram de várias espécies; mais uma das muitas apresentações artísticas do universo manifestadas em beleza. A trilha me levou a uma clareira. Encantado, depois de apreciar cada uma das flores, me sentei em uma pedra. Fiquei pensando na razão de aquelas orquídeas, denominadas de selvagens, terem um comportamento indomável. Negavam-se deixar conduzir contra a sua própria natureza; preferiam perecer a terem de viver fora das suas escolhas. Pareciam não temer a morte; como se inaceitável fosse uma vida além da esfera de manifestação das suas vontades íntimas.

Quando retornei passei na casa do mestre taoísta. Ele estava no intervalo entre as diversas aulas. Comentei com ele sobre o passeio daquela manhã e a inenarrável sensação de liberdade que me envolvera. Falei também sobre as minhas reflexões sobre as orquídeas selvagens. Li Tzu sorriu e disse com delicadeza: “Sem dúvida, a natureza nos empresta valiosa sabedoria em incontáveis lições; as espécies de flores que, apesar da fragilidade aparente, ninguém consegue dominar, sem dúvida, é uma delas.” Fez uma pausa para prosseguir: “Porém, a liberdade como plenitude vai muito além da sensação agradável de andar solto pela montanha.” Olhou-me nos olhos e disparou: “Esta é uma liberdade de superfície; existe outro tipo, a de profundidade. Lembre que as orquídeas não têm pernas nem patas, mas nos ensinam muito sobre a liberdade.” 

Sem que eu precisasse pedir, ele explicou um pouco mais: “A liberdade vai muito além do ir e vir, de flanar sem compromissos pelas ruas e campos. Em essência, a liberdade surge nos pensamentos e se materializa nas escolhas. Entretanto, o livre pensar não é apenas pensar. As ideias costumam trazer consigo vários conceitos construídos há tempos que balizam e limitam o pensamento. Sem perceber, a mente, aprisionada por muros de ideias preconcebidas,impossibilita o indivíduo de atravessar as pontes do pensamento livre.”

“Os condicionamentos socioculturais, os preconceitos e a ignorância limitam o livre pensar; o medo e o egoísmo impedem a livre escolha. Diante disto, a liberdade de andar solto pelo mundo se torna de menor importância.”

“Temos alguns exemplos de pessoas que viveram a liberdade plena, mesmo com limitadas possibilidades de locomoção. Mahatma Gandhi, na sua marcha pacífica pela independência da Índia, certa vez, em conversa com o general inglês que fora ameaçar em mantê-lo indefinidamente no cárcere onde estava aprisionado, caso continuasse a desobedecer às determinações impostas pelo poderoso Império Britânico, se declarou mais livre do que o próprio militar, agora seu carcereiro, e até mesmo do que a Rainha da Inglaterra. Podiam lhe calar a voz, jamais as escolhas; podiam lhe amordaçar a boca, jamais a mente; podiam lhe impedir de abraçar outra pessoa ao mantê-lo em uma cela solitária, jamais de amar quem ele quisesse; podiam lhe afastar da convivência com o mundo, nunca de encontrar consigo mesmo. De corpo franzino e alma gigante, Gandhi incorporava a metáfora perfeita da flor indomável de fragilidade apenas aparente. Era uma flor por se negar a usar qualquer tipo de violência, seja física, seja moral, para manifestar a sua vontade. Foi indomável por saber impossível aprisionarem um espírito verdadeiramente livre. Não temia o próprio medo.”

“Outra memorável personificação da liberdade como plenitude foi o diálogo entre Nero, o poderoso imperador, e Paulo de Tarso, o apóstolo, quando este esteve aprisionado nas masmorras de Roma. O humilde andarilho estava detido sob a acusação de desvirtuar o povo ao propagar as mensagens de amor que um dia aprendera. Era um homem incapaz de qualquer gesto de violência, que nada possuía além dos farrapos de pano que vestia. O seu crime era pedir para que as pessoas se amassem. Mesmo frente aos maus-tratos do cárcere, foi ameaçado de sofrer torturas ainda mais cruéis, e mesmo de morte, caso não confessasse um crime que não praticou e insistisse a falar sobre o amor. Paulo respondeu, sem qualquer traço de arrogância, com a serenidade que lhe acompanhava nos últimos anos de existência, que, apesar de todo poder desfrutado pelo imperador, estava inalcançável a qualquer mal praticado pelo impiedoso monarca. Diante de um Nero atônito, o apóstolo explicou que apenas o seu corpo poderia restar ferido ou amarrado, pois a sua alma estava em um lugar inatingível às mãos e sentenças do ditador romano.” Li Tzu tornou a fazer uma pausa e comentou: “Claro, Nero nada deve ter entendido. Mas, sem dúvida, foi uma manifestação exponencial de liberdade. Por não sentir medo da vida, Paulo ganhou a vida. Ele também foi uma belíssima e rara orquídea selvagem.”

“Pela beleza, delicadeza e sensibilidade que lhe são inerentes, a liberdade se apresenta como uma flor.”

“Por estar à margemdos condicionamentos culturais, sociais e ancestrais; por se situar além dos preconceitos, das leis mundanas e dos poderes de cunho político e financeiro, a liberdade é marginal. Exercida através dos relacionamentos interpessoais, sem a necessidade de qualquer reação agressiva, se manifesta na atitude mansa, porém firme, frente às tentativas indevidas de dominação alheia quanto à usurpação do poder pessoal que nos conecta ao infinito, as escolhas. Basta um simou um nãoque brote da verdade de uma alma madura. Uma alma que se enriquece em virtudes à medida que conhece a si mesmo e se reconhece no mundo.”

“Como os pilares das plenitudes são as virtudes, não se chega à liberdade sem atravessar os portais da humildade, da compaixão, da sinceridade, da coragem e do amor.”

“A liberdade, embora apreciada, incomoda pela mudança provocada no comportamento do indivíduo que passa a pensar e a agir fora dos padrões de controle e aceitação de uma sociedade, em regra, acomodada. Assim, a liberdade é, por natureza filosófica, revolucionária por apresentar um viés impensado de ser e de viver. A liberdade, em essência, é um ato de amor por si mesmo e pela vida. Por se situar nas dimensões mais sutis do ser, a liberdade de uma pessoa não restará domada por nada nem por ninguém, salvo com a sua permissão. Por tudo isto e mais, a liberdade se faz selvagem.”

Em seguida, Li Tzu me pediu que retornasse no final da tarde, após as aulas, quando retomaríamos a conversa acompanhados por xícaras de chá. Agradeci e disse que voltaria. Contudo, sugeri que abordássemos outra plenitude, pois a liberdade estava devidamente compreendida. O mestre taoísta arqueou os lábios em leve sorriso e sussurrou: “Tomara.”

Segui pelas ruelas do vilarejo chinês até a estalagem para almoçar. Enquanto saboreava um delicioso prato de macarrão com tofu e legumes, acessei as redes sociais pelo celular. Para a minha surpresa, descobri a que a moça com a qual eu rompera o romance há pouco, após muitos anos de namoro, acabara de se casar. O susto foi ainda maior ao ver que o noivo era um colega em comum. Pelas fotos vi vários amigos na festa de casamento. Uma sensação amarga me percorreu as entranhas. Sem apetite, empurrei o prato. Levantei-me e fui para o quarto. Tentaria me acalmar até o final da tarde quando retornaria à casa de Li Tzu. Deitado na cama, acessei a minha correspondência eletrônica. Havia um e-mail comunicando que o trabalho apresentado pela minha agência não tinha se classificado para a fase final de um prestigiado festival internacional de publicidade. Como tínhamos vencido no ano anterior, fiquei envergonhado por nem ao menos conseguir a classificação para a próxima fase do concurso. O que pensariam de mim tanto os clientes quanto os outros publicitários? Logo a vergonha deu lugar à revolta. Mesmo sem qualquer fundamento plausível, considerei que os jurados não estavam preparados ou, talvez, terem votado em razão de interesses escusos. Decidi dar um passeio na tentativa de me acalmar. Quando saía da estalagem tropecei em uma das malas de um casal que chegava para se hospedar. Irritado, ralhei com eles para que não fossem tão descuidados nem atrapalhassem a passagem pela recepção. Eles me olharam com compaixão, fato que aumentou ainda mais a minha irritação. Andei a esmo por seguidas horas. Nenhum daqueles acontecimentos estava serenado em meu coração quando voltei à casa do mestre taoísta no final da tarde.

Meia-noite, o gato negro que também morava na casa, correu assustado para se esconder ao sentir a energia que eu emanava quando atravessei o portão. Li Tzu também percebeu. Sem comentar, pediu para eu me acomodar à mesa e colocou algumas ervas em infusão. Depois nos serviu o chá. O agradável aroma perfumou todo o ambiente. Sem demora, comecei a contar o inferno astral que eu começara a viver naquela tarde. Tudo parecia dar errado como em uma conjunção fora do meu controle. Ele ponderou: “Não culpe as estrelas. Elas embelezam a noite.” Falei que parecia que o mundo tinha armado um complô contra mim. Li Tzu tornou a discordar: “O mundo apenas gira no próprio eixo; afaste a ideia de que as pessoas estejam empenhadas em te prejudicar.” Eu disse que ele não estava me ajudando. O mestre taoísta franziu as sobrancelhas e questionou: “Você pensa que se eu estimular essa triste vitimização na qual preferiu se afundar vai ajudar em algo?” Sem esperar por resposta, prosseguiu: “O inferno astral se forma à medida do seu desequilíbrio emocional. Esta falta de harmonia ocorre quando nos esquecemos de iluminar as próprias sombras. Então, restaremos aprisionados.”

Falei que não tinha sentido aquele discurso. Eu era humano e, como tal, era normal que me chateasse com aqueles fatos. Ele concordou em parte: “Sim. Contudo o problema nunca é o problema, mas como reagimos às situações. Você pode se considerar uma vítima do mundo e se sentir no direito de continuar se lamentando em mágoas. Todavia, a ideia de que o inferno são os outros nos leva à estagnação.” 

“A vida precisa de movimento, não apenas externo, mas também interno. Entender como essas emoções densas, cujas raízes estão nas sombras que ainda exercem um enorme poder sobre o modo como conduzimos o raciocínio, impedem a mente de ampliar possibilidades com pensamentos ousados e ideias libertadoras. Através do medo, do egoísmo e da ignorância, as sombras-matrizes, damos vazão a uma legião de outras sombras menores, nem por isto menos nocivas, como a inveja, o orgulho, o ciúme, a ganância, a inveja, a transferência de responsabilidade, entre outras, que reduzem o pensar e limitam as escolhas.”

“Ao sentir ciúme pelo casamento da sua antiga namorada com um colega em comum, acrescido ao fato de outros amigos comparecerem à festa, em verdade, você se mostrou inconformado com a liberdade de escolhas as quais os outros também têm direito. Ao ficar incomodado com a liberdade alheia você negou a sua própria liberdade. Lembre, carcereiro e prisioneiro estão atados em uma mesma situação-cela.”

“Ao sentir vergonha da desclassificação no concurso você se deixou dominar pelo orgulho. Apenas os orgulhosos são passíveis de humilhação. O orgulho é um cárcere vulgar e doloroso. A humildade será sempre a perfeita alquimia a transformar essa prisão em liberdade. A inveja é fruto da vaidade em função da dependência absurda pelos aplausos e aprovação do mundo. A simplicidade ilumina essa sombra cruel e dissolve as grades da cela.”

“A irritação por meros deslizes de outras pessoas, como uma mala mal posicionada na recepção da estalagem, deve nos provocar outro tipo de reação. Sem negar ou justificar a irritação, procure entender o que está desalinhado dentro de si para que tenha provocado tamanha bagunça e desarmonia interna. A minha irritação sempre tem mais a dizer sobre mim mesmo do que é capaz de falar sobre os outros. Este entendimento é um processo valioso para se libertar daquelas emoções densas que tanto nos levam ao sofrimento.”

Percebi que falávamos sobre o mesmo assunto daquela manhã, a liberdade. A plenitude que eu acreditava conhecer. Li Tzu prosseguiu o raciocínio: “Ninguém é verdadeiramente livre enquanto tiver a mente e o coração aprisionados pelas próprias sombras. Para viver a liberdade se faz primordial perceber as prisões sem grades. Elas são muitas, estão disfarçadas, nos enganam, fingem nos proteger. Por não as entender não nos percebemos presos. Preste atenção, pois precisamos conhecer profundamente aquilo que repudiamos ou desejamos. Ninguém, nem mesmo um rei, será livre enquanto permanecer escravo das próprias sombras.”

“Quando verdadeiramente livre, podem dominar a minha aldeia e ao mundo; podem me jogar no fundo de uma cela fétida ou abreviar a minha existência; jamais triscarão em mim.”

Li Tzu sugeriu que fôssemos para a sala ao lado para meditarmos sobre aquelas palavras. Assim como a oração serve de conexão para com o lado invisível da vida, a meditação se mostra valiosa por facilitar o contato com a face mais profunda do ser. Na medida que expando o entendimento de quem sou, consigo me libertar para ir além de quem sempre fui. Acendeu alguns incensos e velas, colocou uma música suave ao fundo, e disse: “Ao se deparar com uma orquídea selvagem não tente podar ou domesticar esta flor. A liberdade é a seiva vital que a sustenta. Apenas a use como inspiração para acalmar as tempestades e fazer germinar a semente indomável que está dentro de você. Ela florescerá junto com a primeira manhã de sol.” 

7 comments

Vidyapriya dezembro 13, 2018 at 10:14 am

Me sentindo muito leve após leitura. Namaste

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André Filipe dezembro 13, 2018 at 3:39 pm

Texto maravilhoso e profundo que mostra a necessidade de refletir a todo instante sobre como estamos reagindo as lições que a vida nos coloca no caminho.

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Joane Faustino Araújo dezembro 14, 2018 at 4:46 pm

Gratidão 🌹♥️

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Henrique dezembro 15, 2018 at 9:31 am

Boa tarde, os vossos textos são maravilhosos, verdadeiras lições de vida.
Existe algum local em Portugal onde possam ser comprados ou só através do vosso site, obrigado…

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Claudia Pires dezembro 29, 2018 at 12:27 pm

👏👏👏👏👏👏

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Adélia Maria Milani janeiro 9, 2019 at 7:48 pm

Gratidão! ♡ ☆ ♡

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Fernando Machado junho 11, 2019 at 2:53 am

Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz…

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