MANUSCRITOS IV

O Sétimo Portal – Os Oito Portais do Caminho

Eu estava na varanda do mosteiro. Apesar da linda paisagem formada pelas montanhas e florestas dos arredores, eu aproveitava a quietude do momento, na tentativa de olhar para dentro de mim. Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Este era o código que eu precisava decifrar para seguir nos meus estudos sobre Os Oito Portais do Caminho. O estudo, ao lado da percepção, é de fundamental importância para que se possa compreender a próxima transformação do ser, sem a qual não se avança na jornada infinita rumo à luz. Esse é o processo natural; absorvemos conhecimento e o aprimoramos através das experiências vividas em nossas relações. Na oportunidade seguinte, quando estamos prontos, ou melhor, quando o conhecimento resta sedimentado no ser, o aperfeiçoamento se torna inerente às escolhas. Assim, aos poucos, à medida das transmutações individuais, o conhecimento vira sabedoria. Por isso é comum que todos saibam mais do que são. Ser é sempre o passo seguinte do saber.

O silêncio e a tranquilidade me foram esbulhados por uma gritaria. Dois monges discutiam agressivamente na biblioteca. Nada é por acaso, pensei. Era uma excelente oportunidade para eu exercitar os meus dotes de pacificador, justamente o portal que naquele momento eu estudava. Deixei o livro sobre a pequena mesa ao lado da poltrona e me dirigi ao local onde eles estavam. Cheguei junto com Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Outros monges já estavam lá e tentavam impedir que as ofensas verbais subissem de tom, afastando Michel e Peter, os dois que brigavam. O mais estranho era fato de eles serem amigos íntimos e de longa data. Embora morassem em países diferentes, procuravam sempre coincidir os respectivos períodos de estudos no mosteiro para que pudessem estar juntos. Pedi ao Velho que me permitisse conversar com eles e apaziguar a situação. Ele me olhou com a sua enorme bondade e perguntou: “Você tem condições de realizar essa difícil e bonita tarefa?” Com segurança, respondi que me considerava à altura do desafio. O Velho apenas balançou a cabeça me autorizando, se virou e seguiu para o jardim para continuar a cuidar das roseiras, um dos seus passatempos favoritos.

Pedi para que os outros monges também se retirassem. Quando fiquei a sós com Peter e Michel na biblioteca pedi para que me explicassem a razão do desentendimento. Naquele instante não foi possível; ambos falavam ao mesmo tempo e nenhum dos dois estava disposto a ouvir o outro. Sugeri que conversaria com eles em separado; em seguida sentaríamos os três para alinharmos a questão a um bom termo. Assim foi feito. O conflito, em resumo, era em razão de eles estarem há anos escrevendo um livro. Cada qual o seu. Enquanto Michel falava sobre esoterismo, Peter abordava o ocultismo. Como conversavam muito e os assuntos se misturam em vários aspectos, começaram a se acusar mutuamente de plágio. Ambos estavam zangados, ofendidos e se sentiam prejudicados. Ouvi os amigos em separado, abdicando de qualquer comentário, para que pudessem desabafar as emoções densas que os sufocavam. Isto os ajudaria a serenar os ânimos e, por consequência, a raciocinarem com maior clareza. Em seguida pedi para que fossem descansar em seus quartos. Voltaríamos a conversar após o jantar. 

À noite voltamos a nos reunir; desta vez, os três juntos. Iniciei explicando que qualquer trabalho tem autoria, porém as ideias e o conhecimento são universais; um mesmo conceito ou tema pode restar inserido em muitos trabalhos sem caracterizar plágio, desde que abordado por diferentes vieses. Logo, ambos tinham razão e ninguém tinha razão. De fato, havia ideias em comum nos trabalhos de Peter e de Michel; contudo, elas não tinham donos, pois habitavam há tempos o inconsciente coletivo e eram do conhecimento do mundo; assim, podiam ser utilizadas pelos dois a partir do momento que fizessem abordagens distintas e pessoais. Quando terminei de falar achei que conseguira pacificar os amigos. Ledo engano. Pior, para a minha surpresa, eles se viraram contra mim. Peter me acusou de não ter condições morais de falar sobre o assunto, pois a minha agência de propaganda enfrentava uma difícil ação judicial por plagiar uma campanha publicitária veiculada por uma concorrente. Argumentei que não havia nenhum plágio e que a improcedência do processo restaria comprovada. Expliquei que a finalidade daquela ação judicial, em verdade, não foi a de comprovar a existência de plágio, mas um modo indecente para desmoralizar a agência e a afastar da disputa por futuras contas, uma vez que ficaria mal falada no mercado. Enfim, o uso indevido do judiciário como nefasta jogada comercial. Falei que a investida tinha sido infrutífera, pois, embora não houvesse uma sentença definitiva, já tínhamos vencido em primeira instância de julgamento. Lamentei que os jornais costumam fazer muito ruído com meras suposições, quando um processo desse porte se inicia. Infelizmente, anos depois, ao se ter uma decisão definitiva, pouco, ou mesmo nada, noticiam. A lembrança popular acaba por restar contaminada pela mentira. 

Apesar das explicações que eu tinha oferecido, aquela conversa começou a me alterar o ânimo. Como se não bastasse, Michel disse que o fato de eu ter sido vitorioso em um julgamento preliminar nada representava, pois era comum as sentenças serem reformadas nos tribunais. Acrescentou que tinha acompanhado o caso em uma revista de grande circulação. Para ele não havia nenhuma dúvida: o plágio era indiscutível. Este novo comentário foi suficiente para eu me irritar profundamente. Alterei o meu tom de voz para acusá-los de não enfrentarem as suas questões pessoais ao desviarem as agressões em minha direção. Alertei que a minha empresa não era o foco do conflito no mosteiro. Eles devolveram a acusação sob a alegação de que eu tentava me sentir uma pessoa melhor por mostrá-los fracos e incapazes de resolverem os seus próprios problemas. Isto culminou por me descontrolar emocionalmente. A discussão escalou tons até que outros monges, por causa dos gritos, entraram para nos acudir. Salvaram-nos do perigo que cada um oferecia, acima de tudo, a si mesmo.

Encaminharam-me para o meu quarto. Fui aconselhado a ter uma noite de sono profundo como remédio infalível às emoções intempestivas e selvagens. Não consegui pregar o olho. Rolei de um lado para o outro da cama até que ao primeiro sinal do amanhecer me levantei e fui à cantina em busca de uma caneca de café. Na última mesa, ao canto, o Velho parecia me esperar entre uma xícara de café e um pedaço de bolo de aveia. Ele fez um gesto para eu me aproximar e me recebeu com o seu habitual sorriso doce. Perguntei se ele sabia dos fatos da noite anterior. Sem qualquer traço de recriminação em seus olhos, ele anuiu com um movimento de cabeça. Falei que fui agredido pelo simples fato de tentar ajudar. O bom monge me recordou uma antiga lição: “Descarte o personagem da vítima. Isto atrapalha o melhor entendimento.” Concordei com um movimento de cabeça e, em seguida, lamentei por ter fracassado na missão para a qual eu me propus. O Velho comentou: “De outro lado, o mesmo papel da vítima. Assim você se manterá atolado no lodo dos lamentos.” Com a paciência que lhe era peculiar, explicou: “Não se trata de fracassar na missão, Yoskhaz. Você apenas ainda não conseguiu vencer a si próprio.”

Interrompi para dizer que eu estava estudando o Sétimo Portal e entendia a importância de me tornar um pacificador. O Velho argumentou: “Ninguém pacifica o mundo enquanto estiver com o coração em guerra. Não se pode oferecer o que não se tem; em verdade, apenas tenho aquilo que sou. Assim, as coisas que tenho são somente aquelas que ninguém pode me tomar; todo o resto pode até estar comigo, mas não é meu. Meu é somente o eu. Apenas assim me encontro com a paz. A paz é uma plenitude, uma conquista definitiva do ser. Alheia a qualquer circunstância exterior ao indivíduo. Enquanto não se entender isso não se conhecerá a paz.” 

“Lembre, a grande batalha da vida é aquela que travamos dentro de nós. Enquanto não houver harmonia entre o ego e a alma não existirá paz no ser. Não se verá o fim das tempestades mundo afora enquanto persistirem os conflitos mundo adentro. Esta é a cláusula única do tratado primordial da paz.”

“Vale salientar que nos textos sagrados o termo pacificadortraduz aquele que já traz em si todas as plenitudes. Assim, serve não apenas para a paz, mas também para a liberdade, a dignidade, a felicidade e o amor.”

“Ser um pacificador é simples, bonito e difícil. Simples como dar um laço em uma fita; às vezes, basta uma boa palavra, um gesto de amor improvável como pedir desculpas ou perdoar, um sorriso sincero ou um abraço forte. Bonito por fazer com que o laço de fita ligue um coração a outro; unir todos os corações é a beleza da vida. Difícil, pois sem a fita não faço o laço; sem o laço não aproximo os corações. Para ter a fita e dar o laço preciso ser tanto a fita quanto o artesão do laço. Ninguém consegue isso enquanto não alinhar o ego com a alma em um mesmo eixo de sabedoria e amor. O ego é a fita; na alma faço o laço. Para tanto, todas as virtudes indispensáveis aos portais anteriores precisam restar sedimentadas em mim.”

Bebeu um gole de café e prosseguiu na explicação: “Todo portal tem o seu guardião. Ele não impede a passagem de ninguém, porém desafia a capacidade do andarilho. Não por maldade, mas por amor. Não adianta a ninguém avançar no Caminho se não estiver pronto, pois irá se perder e se prejudicar mais à frente. Como um pai que não permite ao filho se lançar ao mar para uma travessia antes de saber nadar. Os guardiões dos portais não são inimigos dos andarilhos; em verdade, protegem e educam os viajantes. Somos nós que, na ânsia de chegarmos ao final sem entender a importância do processo, movidos pelas sombras do orgulho e da vaidade de um ego ainda selvagem, olhamos para os guardiões como empecilhos e não como mestres. Aprenda, transmute o conhecimento em si, aplique em suas relações e então, receberá permissão do guardião para seguir em frente. Esta é a roda dos ciclos evolutivos e a lei que rege esses valorosos sentinelas.”

Referindo-se a mim, o Velho explicou: “A inteligência emocional sucumbiu diante das primeiras estocadas. Diante da provocação, o orgulho e a vaidade saíram em sua defesa e tomaram o controle das suas reações.” Argumentei que fui atacado em minha honra. O bom monge sacudiu a cabeça em negativa e ponderou: “Confunde-se honra com orgulho e vaidade. Em verdade, honra está ligada à dignidade. Logo, por ser uma plenitude, é invulnerável a qualquer ataque. A dignidade se resume em eu tratar os outros ao jeito como gostaria que me tratassem. Por consequência, está conectada a virtude da justiça, que, por sua vez, está alicerçada nas virtudes da sinceridade e da honestidade. Assim, sei que críticas retratam apenas as opiniões alheias, sem refletir necessariamente a pureza da verdade. Quando verdadeiras, que as críticas sirvam de lição; quando equivocadas, que sejam envoltas em compaixão. Para tanto, doses de humildade e simplicidade são indispensáveis.” Bebeu mais um gole de café e fundamentou: “Percebe como as virtudes se interligam e se conectam com as plenitudes em diferentes pontos de uma mesma trama na qual todas se sustentam? Uma virtude serve de ponte à outra em constante reciprocidade. Os fios das virtudes confeccionam as teias das plenitudes. Uma plenitude fortalece a outra e, juntas, formam o universo de uma vida plena.” Fez uma pausa para uma pergunta retórica: “Entende agora o que é um ser inteiro?”

Sem precisar de uma resposta, ele prosseguiu: “Quem ainda é dirigido pelas sombras possui um ego que pouco se comunica com a alma. Quando as partes de um mesmo ser não dialogam, restam isoladas. Isto faz com que ele se sinta dividido. Abre uma enorme rachadura e um aparente vazio se instala. Essa insatisfação resvala nas relações interpessoais. As mínimas questões acabam por incomodar muito; não se encontra beleza na vida. Todos os conflitos do mundo surgem em razão de universos pessoais incompletos ou quebrados”. 

“Fundamental para um indivíduo pleno não deixar a mente longe do coração”. Mordiscou um pedaço de bolo e alertou: “A mente é a estrada para levar luz ao coração. Bons pensamentos conduzem, orientam e aperfeiçoam os sentimentos. Ninguém se sentirá bem nem fará o bem enquanto as suas emoções estiverem revoltas. Todas as vezes que as paixões passarem à frente do amor haverá conflito. Como posso oferecer ao mundo uma paz que não trago em mim? É preciso estar sempre ajustando a rota para se chegar ao destino”. 

Baseado nesse raciocínio, questionei se eu teria o direito de me meter na briga dos outros. Ele explicou: “Se for para tomar parte, fazer com que um se subjugue ao outro, exibir absurda superioridade, exercer qualquer tipo de dominação ou na busca por meros aplausos é desnecessário, prejudicial e sombrio. Entretanto, acalmar os ânimos, alinhar razões desajustadas e serenar o conflito é indispensável e divino. A paz, assim como as demais plenitudes, é dinâmica em sua própria existência. O indivíduo amoroso, livre, digno, feliz e em paz consigo mesmo possui uma aura que irradia a tudo em seu redor. As suas palavras e gestos iluminam a todos sem invadir a vida de ninguém”.

“Sentimos uma agradável sensação de acolhimento e calma ao lado de alguém que traz as plenitudes em si. O verdadeiro pacificador não precisa de palco nem holofotes. Nele, a paz transborda as fronteiras do ser e se espraia por onde passa. Nada o irrita, agride nem lhe é furtado; com simplicidade ele encontra as melhores soluções e se encanta com a beleza que há em tudo e em todos. O simtem a clareza do sim; o nãopossui a sinceridade do não. Qualquer tempestade se transforma em pingo d’água”. 

“De outro lado, o indivíduo em conflito consigo enxerga problemas em todos e dificuldades em tudo. Tumultua as manhãs de sol. Acha o mundo ruim e considera as pessoas complicadas pela falta de entendimento que tem em relação a si mesmo. Costuma confundir a ordem social com a paz pessoal”.

Argumentei que, se a paz é uma conquista pessoal, eu não poderia oferecer a paz a ninguém. O monge concordou: “Não, não pode. Todavia, pode iluminar o ambiente no qual se encontra. Diante da provocação de ontem, caso o seu ego estivesse em equilíbrio com a sua alma, a reação seria mansa, compassiva, humilde e amorosa ao mesmo tempo firme e corajosa. Esta harmonia tem um poder incomensurável. Seria como uma semente de luz; a força da vida. Nada nem ninguém teria o poder de lhe arrancar do eixo essencial de si mesmo.” 

“O jeito como ajo demonstra quem quero ser e, sem dúvida, está repleto de intenções honestas. No entanto, a maneira como reajo diante ao imponderável define quem já consigo ser por me mostrar os valores arraigados no ego através da alma. Enfim, as virtudes conquistadas são apenas aquelas inerentes às minhas atitudes. Se preciso de um tempo para raciocinar significa que as virtudes ainda não estão sedimentadas, mas em formação. Não veja isto como algo ruim, pois assim é o processo evolutivo. A minha reação é a perfeita régua para eu compreender o que, por ora, está dentro da bagagem que carrego. Logo, apenas tenho aquilo que sou. Se sou a paz, a tenho em flor. Se não a tenho, sei que adormecem em mim as suas sementes. Saio em busca para despertá-las. Assim, me torno um jardineiro através das minhas palavras, atos e escolhas. No jardim de hoje defino flores de outras cores para encantar a manhã do dia seguinte”. 

“No tempo oportuno e aos poucos, o solo do coração de cada pessoa se tornará fértil e propício ao florescimento das sementes de paz, dignidade, liberdade, felicidade e amor que um dia eu for capaz de espalhar pelos bosques da humanidade.   Apenas isso me fará um pacificador; e, acredite, este pouco é tanto que me torna filho de Deus.”

Questionei ao Velho se todos não somos filhos de Deus. Ele explicou: “Sem dúvida. Porém, os textos sagrados se referem como filho de Deus aquele que já espelha a Sua imagem e semelhança; não pelo mero fato de existir nem pelo seu corpo e rosto, mas através do jeito de caminhar.”

Ficamos algum tempo em silêncio. O bom monge esvaziou a xícara de café e pediu licença. O dia amanhecia e havia outras coisas para fazer. Fiquei observando ele se levantar e seguir com os seus passos lentos, porém firmes. 

6 comments

Wllisses Thel janeiro 1, 2019 at 10:26 am

Yoskhaz, neste primeiro dia do ano, a mensagem que você nos trouxe me diz pra renascer, pra acreditar e pra seguir os passos do Mensageiro da Paz. As lágrimas dessa manhã, além de lavarem meu ego, desnudando parte dele, iluminaram minha alma e, ainda que vendo somente flashs dela, por hora, pude redirecionar o barco em direção a mim mesmo. Gratidão por aceitar com maestria a missão de ser mensageiro das Terras Altas. Permaneceremos juntos neste grande coração chamado humanidade! Luz e proteção na tua jornada.

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Claudia Pires janeiro 1, 2019 at 4:23 pm

Gratidão.

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Joane Faustino Araújo janeiro 4, 2019 at 6:08 am

Gratidão 🌹♥️

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Adélia Maria Milani janeiro 22, 2019 at 9:50 pm

Gratidão! ♡ ☆ ★

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Michelle janeiro 29, 2019 at 7:51 am

❤️🌹!

“…os textos sacros se refere como filho de Deus aquele que já espelha a Sua imagem e semelhança; não pelo mero fato de existir nem pelo seu corpo e rosto, mas através do jeito de caminhar…”

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Fernando Machado junho 18, 2019 at 5:19 am

Gratidão profunda e sem fim, sem fim…

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