MANUSCRITOS V

A bicicleta amarela

Éramos uns dez monges, como se denominam os membros da OEMM – Ordem Esotérica dos Monges da Montanha. Estávamos sentados à mesa, na cantina, ouvindo as histórias engraçadas de Pablo, um espanhol que, havia anos, era um dos cozinheiros do mosteiro, quando fomos surpreendidos com a chegada de Luís, um monge muito querido por todos pela alegria que costumava irradiar. Para nossa surpresa, ele estava com olheiras profundas e os olhos inchados de tanto chorar. Luís era vinicultor em uma pequena cidade no sul da França e sempre nos trazia algumas garrafas do excelente vinho que produzia quase artesanalmente. Desta vez chegou com as mãos vazias e o coração em pedaços. Tinha ficado viúvo. Pelo sofrimento que aparentava, pensamos que o fato tivesse ocorrido nos últimos dias. No entanto, já se passara quase um ano da partida da sua esposa. Ao contrário do que acontece com a maioria das pessoas, Luís não apresentava sinal de melhoras com o passar tempo. A dor se aprofundava a cada dia. 

Todos se levantaram para oferecer um abraço e palavras de conforto. Lúcio foi o primeiro a falar: “Amigo, procure se alegrar. A morte não é o fim, mas apenas uma transformação indispensável à renovação do espírito e ao prosseguimento do processo evolutivo. Em algum momento vocês se reencontrarão. A morte é um ato de amor da Vida pela vida”. O sofrimento, para alguns, é ferramenta de fortalecimento da fé. Para outros, um instrumento que leva ao ceticismo. Luís estava descrente de todo conhecimento que apreendera em muitos anos de estudos. Ele questionou as palavras do colega: “Quem me garante que eu tornarei a encontrar a minha mulher em outro plano de existência?”. Lúcio manteve a serenidade, vital àquele momento: “O amor é uma garantia segura. Ele será sempre a ponte pela qual atravessaremos os abismos da vida. É uma via a nos conduzir para um mesmo destino. As vibrações do amor são sentidas até os confins do universo, permitindo que pessoas afins se localizem e se reencontrem”.

Luís questionou: “Tenho dúvidas se o amor é um bom sentimento. Desconfio que o amor é um truque das trevas: nos atrai por sua beleza e encantamento. Quando estamos no clímax da felicidade, nos tira o chão para despencarmos no vazio de uma dor sem fim. Se eu soubesse que sofreria tanto, teria preferido nunca ter amado”. Outro monge, o Richard, lembrou um conceito que o Luís já sabia, mas parecia ter esquecido: “Ninguém sofre por amor. Se existe sofrimento não é por causa do amor, mas por não saber lidar com outras questões inerentes ao amor, como, por exemplo, a liberdade. Amar não pode se tornar sinônimo de domínio, posse ou escravidão. O amor não lavra escritura de propriedade nem fecha grades. Para amar de verdade é preciso se encantar com amor mesmo na ausência física da outra pessoa. Indispensável enxergar a beleza da saudade”. 

Irredutível, Luís discordou: “Não há beleza onde só existe tristeza”. Foi a minha vez de expor outro viés ao colega tão querido por todos no mosteiro: “É necessário perceber as razões da alegria por trás da saudade. Lembre, somente sentimos saudade das coisas boas que vivemos. Apenas sentimos saudades das pessoas que são preciosas ao nosso coração. Só existe saudade quando há amor”.  

Ele rebateu de modo sarcástico: “A saudade é o preço do amor. E saiba, um preço muito alto. Quer saber quanto? A própria vida. O valor cobrado nos deixa endividados pelo resto da existência. A saudade é a cruel credora dos amantes”. Tentei mostrar a incoerência do seu raciocínio: “O amor não nos abandona quando ficamos longe das pessoas que amamos. A saudade é a conexão entre as pessoas que se amam quando estão distantes. O amor somente nos deixa quando abrimos mão dele. Permitimos que ele escape no momento que insistimos em aprisioná-lo. No mais, por trazer consigo a essência da liberdade, o amor nada cobra. Somos nós que exigimos dele, então, quando isto acontece, o perdemos. Domine apenas a si e conhecerá a plenitude; tente dominar a situação e encontrará a dor”. Dei uma pausa e comentei: “Ame a sua mulher mesmo que ela não esteja fisicamente ao seu lado. Nada impede este amor. Porém, lembre dela com alegria. A saudade é alegre, onde há tristeza falta amor”. Não satisfeito, acrescentei: “Você ainda é muito jovem e, apesar do infinito amor pela Lia, ainda é possível amar outra mulher até o reencontro no dia do dia sem fim. Uma situação não anula a outra”. Lia era como se chamava a sua esposa.

Luís tornou a discordar: “Será impossível para mim. A Lia é insubstituível”. Outro monge, o Bill, na tentativa de ajudar o Luís a superar o sofrimento, citou um aforismo muito popular: “Ninguém é insubstituível”. Foi a gota d`água. Luís nos olhou com revolta, ficou ofegante e, em seguida, começou a se sentir mal. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, que ouvia a conversa em silêncio, se manifestou. Ele segurou a mão do Luís e disse: “Eu entendo você”. Depois, para o nosso espanto, afirmou com firmeza e serenidade: “É impossível substituir alguém”. Em seguida o aconchegou em um demorado abraço e o aconselhou a ir para o quarto descansar.

A sós, depois que o Luís tinha se retirado, o Velho nos falou com doçura e determinação: “Vocês mostraram toda a beleza da sabedoria sobre o amor. Porém, esqueceram de envolver com amor o momento do Luís. Palavras de amor precisam estar envolvidas por igual sentimento, sob pena de soarem vazias e sem qualquer virtude; não servirão para encantar o coração ninguém”. Tentamos explicar que a nossa intenção era de ajudar o colega ao mostrar outro olhar, um viés diferente e possível, capaz de retirá-lo da escuridão que se encontrava. O Velho concordou, em parte: “Inegável as boas intenções que os moveram. Os argumentos também são excelentes. Contudo, devem vir temperados com misericórdia, uma indispensável virtude ao mundo, sem a qual as palavras perdem a luminosidade e o efeito curativo. A sabedoria é preciosa, mas sem colocar o próprio coração para atenuar o sofrimento alheio, perderá grande parte do seu poder”. 

Fez uma pequena pausa para prosseguir: “Lembrem que o momento do Luís pede acolhimento e carinho para que recupere o equilíbrio, por ora, perdido. Somente após, será a hora da sabedoria para que ele possa retomar à harmonia interna e resgatar a alegria da existência. Inverter a ordem desses fatores atrapalha a equação da vida. Quando o coração não está sereno, a mente não consegue alocar as ideias, por mais sensatas que sejam”. Esvaziou a xícara de café e aconselhou: “Recolham-se para refletir e meditar. Amanhã conversaremos mais e melhor”.

Quando estávamos nos retirando, o bom monge nos alertou: “Apesar dos ótimos argumentos utilizados, houve um equívoco conceitual”. Fez uma breve pausa antes de nos surpreender: “Todos somos insubstituíveis”.

Passados vários dias, o Luís não apresentara melhora.  O seu desespero se tornara uma revolta contra os deuses e os homens. Amaldiçoava os céus e o mundo. Com enorme paciência, o Velho passeava por horas ao seu lado pelos jardins do mosteiro. De longe, apenas víamos o Luís falando enquanto o Velho somente o ouvia.

Cerca de uma semana depois, estávamos todos na cantina. Tínhamos saído da sala de meditação e fazíamos um pequeno lanche antes das palestras e estudos do dia. O Velho estava conosco. Falávamos de assuntos diversos, quando o Luís entrou. Ele, antes mesmo de se sentar à mesa, disse que gostaria de continuar a conversa interrompida anteriormente. Ficamos em silêncio. O Velho pediu para que ele ficasse à vontade para falar, seja como catarse, seja para se ouvir, um eficiente método para se entender melhor. O Luís voltou ao assunto: “A vida só tem sentido pela sua crueldade. Ensinam que devemos amar as pessoas. Fazemos isto e quando nos acreditamos felizes, as perdemos para sempre”. Como ninguém se manifestou, ele prosseguiu: “Onde vou encontrar outra mulher como a Lia? Impossível. A minha dor nunca terá fim”. Manteve o diapasão do discurso e dos argumentos por longos minutos. O Velho o deixou falar como maneira de esvaziar as mágoas do coração e também para que a mente tentasse encontrar alguma incoerência nas próprias palavras. Então, reconstruir o caminho de volta para si mesmo. Sem interrupções, Luís falou e se repetiu até cansar de se ouvir. Após um breve silêncio, o Velho o consolou: “Eu o entendo perfeitamente. Como todos sabem, passei por uma situação semelhante no passado. Você tem razão quando diz que ninguém substituirá a Lia. Somos todos únicos e, portanto, insubstituíveis”. E desconcertou a todos ao afirmar: “É maravilhoso que seja assim”.

Diante de olhares que expressavam pontos de interrogação, o bom monge explicou: “O amor, a justiça e a sabedoria do universo são incomensuráveis. Se pudéssemos substituir as pessoas a vida seria muito vulgar: ao sair um, outro igual ocuparia o seu lugar. Uma situação rasa e pobre, pois somente conheceríamos um único tipo de beleza. Por sermos insubstituíveis, com o afastamento de uma pessoa, independente do motivo, teremos que aprender a apreciar diferentes espécies de beleza para que vida prossiga com as suas cores e encantamento. Ninguém substitui ninguém porque é indispensável que possamos amar a todos. Ninguém ocupa o lugar de ninguém para que possamos expandir quem somos e acrescentar muitos outros em nossos corações. Agregar é bem mais do que substituir. Assim aprendemos a amar mais e melhor”.

“Negar a troca é estagnação; aceitar a substituição é um engano. Ao agregar fazemos a escolha pelo movimento e a pela expansão. Toda perda é aparente; perdemos para que possamos aprender a ganhar”.

O Velho se virou para o Luís e perguntou: “Busque nas suas memórias mais antigas se houve algum brinquedo que, por ter perdido, lhe que causou muita falta”. O Luís fechou os olhos por alguns instantes e murmurou: “A bicicleta amarela”. Como um viajante no tempo, relembrou: “Quando garoto eu a usava para desbravar o mundo. Ela me levava a todos os lugares. Uma companheira inseparável até o dia em que foi furtada. Fiquei muito triste”. O Velho quis saber se os pais lhe deram outra bicicleta para substituir aquela. Luís disse que sim: “Mas não foi a mesma coisa. Por alguma razão que desconheço, eu me desinteressei por ela”. O Velho questionou a razão. O Luís não soube explicar: “Era da mesma marca e modelo. Era também amarela, apenas um pouco mais clara. No entanto, me parecia bem diferente, como se faltasse alguma coisa fundamental”. O bom monge esclareceu: “Em verdade, não era algo que faltava, mas que havia demais: apego”. Em seguida, expandiu o raciocínio: “O apego impede as transformações e as diversidades inerentes à vida. Aquela primeira bicicleta por ser insubstituível o fez acreditar que todas as demais seriam imprestáveis ou ruins. Esta maneira de pensar aprisiona por limitar a existência e estabelecer fronteiras estreitas ao mundo. Ao seu mundo”.

“Quando temos amarras no sentir, aprisionamos o pensar. Quando os sentimentos são libertados dos cárceres da dor, o pensar se liberta das limitações. O apego é uma prisão disfarçada em afeto. Os sentimentos são vitais para aperfeiçoar a percepção que possuímos. A realidade se contrai ou se expande na medida da tristeza ou da alegria que sentimos; a consciência se contraí ou se expande na medida das amarras ou da liberdade de pensar e perceber a realidade. O sofrimento, enquanto perdurar, será uma poderosa algema do pensar. Como eficiente simbiose, o pensar é o alicate a cortar as correntes do sofrer. A mudança de olhar traz a cura e altera a dimensão da vida. A consciência estabelece o tamanho do mundo e as cores da realidade para cada um de nós”.  

“A bicicleta amarela não é diferente das pessoas que fazem parte de nossas vidas. Ficam aquelas que escolhemos, mesmo que não nos escolham; que nos ensinaram, mesmo que na adversidade; que amamos, mesmo quando distantes fisicamente. Como escreveu a poetisa, longe é um lugar que não existe e para sempre é um tempo que se mede com amor. Precisamos nos abrir para apreciar a beleza que não conhecemos. Abdique das classificações rasteiras como melhor ou pior, isto é limitador, além de bastante injusto. Aceite que seja diferente. É o bastante para o encantamento”.

“As pessoas são diferentes uma das outras. Não há duas iguais; somos todos únicos. Logo, insubstituíveis. Isto não é um problema, mas a razão da evolução. Na individualidade reside o encanto de cada pessoa. Motivo pelo qual causa frustração e, consequente sofrimento, quando se tenta substituir alguém. É uma jornada impossível. Você ficará decepcionado caso insista nessa viagem. Mais grave, deixará de descobrir o encanto em mil outras paisagens do mundo. O segredo está em agregar ao invés de substituir. Se o fato de ninguém substituir ninguém é uma premissa verdadeira, chegaremos a conclusão, também verdadeira, que uma beleza jamais anulará outra. Acolha todas em seu coração. Então, achará o encanto do amor improvável por entender que a vida possui uma caixa de tinta com infinitas cores. E a maior parte delas ainda não conhecemos”. Piscou um olho para o Luís como quem revela outro segredo e disse com doçura: “Mesmo o amarelo possui muitos tons. E todos são belos e indispensáveis”.

“A antiga bicicleta amarela o fez conhecer lugares fantásticos; isto a torna inesquecível e eterna em seu coração. A nova bicicleta amarela o levaria a outros locais além da sua imaginação e abriria mais espaço em seu coração. Porém, você não permitiu”.

O Velho franziu a sobrancelha e disse: “A lição se repete por necessidade. Você pode continuar sentado à beira do caminho lamentando a falta da bicicleta amarela. Contudo, o seu sofrimento não o levará a lugar nenhum. Como ninguém sofre por amor, mas por apego, você tem a escolha de modificar a realidade ao usar o amor como impulso para ir além de onde sempre foi. Nunca faltará uma bicicleta amarela, de improváveis nuances, para quem tem vontade de viajar. Esta é a magia da vida”.

Nesse momento, a lágrima que descia pelo rosto do Luís encontrou um sorriso, como há muito tempo não acontecia. Algo começava a mudar naquele instante. Para renascer basta a alegria contida dentro de uma vontade.

Imagem: Eti Swinford – Dreamstime.com

9 comments

Fernando Cesar Machado novembro 1, 2019 at 4:21 am

Gratidão imensurável irmão das Estrelas,
profunda e sem fim,
sem fim Yoskhaz,
sem fim…

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Terumi novembro 1, 2019 at 11:30 pm

Gratidão! 🙏

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Alcídia Batista novembro 2, 2019 at 6:26 am

Que genial A bicicleta amarela!!!
Lindo demais Amado Yoskhaz!!!

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ELVIS ANTONIO MIRANDA novembro 2, 2019 at 1:21 pm

Muito obrigado por mais este ensinamento, por esta outra maneira de ver, todos somos insubstituíveis, para que possamos aprender a amar, amas a todos como irmãos. Grato por mais esta luz. Que o senhor do universo o abençoe hoje e sempre.

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Claudia Pires novembro 3, 2019 at 5:17 pm

Lindo , lindo texto . Explica mt bem sobre perdas e novas possibilidades, apego e amor, a dor da saudade e a visão da morte, a unicidade e insubstituicão. Amei!!! Grata! !!

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Marco Santana Raimundo Pereira novembro 5, 2019 at 11:23 pm

Gratidão, lindo texto.

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Adélia Maria Milani novembro 9, 2019 at 11:19 pm

Gratidão,! 🙏💜💜✳️✳️⭐⭐🌠🤩

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Maria Helena F.Macedo novembro 29, 2019 at 8:20 pm

Nossa! Quanta emoção!!! Gratidão 🍀

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Daniel Bollara fevereiro 4, 2020 at 3:42 pm

Obrigado, seus textos sao remedios para a alma.

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