MANUSCRITOS V

O tempo

“Qual a verdade da rosa?”, me perguntou o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, quando o questionei sobre o tempo. Em seguida, pediu licença, se levantou e me deixou a sós com os meus pensamentos. Não entendi a correlação que ele tentava me fazer entender. Pensei que não quisesse enfrentar essa questão tão complexa e de difícil compreensão. Os nossos dias são medidos pela rotação da Terra sobre o próprio eixo; os segundos foram estabelecidos por um florentino ao verificar o padrão regular da oscilação de um pêndulo, fato científico relacionado ao efeito gravitacional do planeta que, por ora, habitamos. Outros planetas, estrelas e galáxias, com influências eletromagnéticas próprias, possuem impensáveis resultados na aferição das horas como medida para o tempo. Isto nos afeta de incontáveis maneiras. A velhice é uma permissão concedida a alguns; a morte é um direito de todos, do qual ninguém pode abdicar. Como um tambor, o tempo parece ditar o ritmo desta marcha. Não há como negar a sua enorme importância à nossa existência, embora importantes físicos e cientistas já tenham nos alertado da sua relatividade. Usamos um padrão convencionado há séculos como aferidor de uma força ainda bastante desconhecida que denominamos Tempo. Em nossos estudos metafísicos, os quais associamos à Filosofia, trabalhamos com a ideia da transitoriedade do corpo e da imortalidade do espírito, a verdadeira identidade de todos nós. A medição planetária de tempo possui fácil leitura: inventamos o relógio, que serve bem ao corpo. Contudo, há outra, com fator regulador próprio ao espírito. Percebemos com clareza que várias medições de tempo operam em paralelo, sendo que as que regulam os ciclos menores estruturam os períodos seguintes. Enfim, o tempo do corpo é diferente daquele aplicado ao espírito. Um perece enquanto o outro prossegue; aquele é unidimensional, este é interdimensional. Em análise um pouco mais profunda, o tempo do espírito, embora diverso, por ora está associado àquele imposto ao corpo pelas Leis da Física, pois, tenho no corpo um instrumento de experiências evolutivas proporcionadas pela existência, fundamentais ao avanço do espírito. Ele é quem anima o corpo e guarda a essência de quem eu sou. A minha jornada planetária, que tem como parâmetros os anos contabilizados pelas translações da Terra, com inevitáveis reflexos na deterioração do corpo, é um instrumento fundamental de navegação na atual escala evolutiva, exercício de aperfeiçoamento e capacitação do meu espírito imortal. Há uma evidente e indispensável simbiose nas diferentes escalas de tempo que regem a existência do corpo e a vida do espírito. Queiramos ou não, isso atinge a você e a mim.

Eu queria entender para melhor aproveitar. Trata-se de apenas um dos muitos questionamentos provocados quando nos aprofundamos na ideia do tempo. Dizem que teriam indagado a Agostinho de Hipona, um filósofo cristão da Idade Média e muito importante para desenvolvimento da filosofia ocidental, se ele sabia algo sobre o assunto. O sábio teria dito: Eu sei o que é o tempo, no entanto, se tiver que explicar, já não sei mais. Nenhuma resposta se propõe definitiva face a complexidade do tema. Todavia, aprofundar a questão nos habilita cada vez mais ao uso de uma ferramenta de grande poder e inegável influência.

Se existia uma pessoa no mundo capaz de me explicar sobre o tempo, ninguém melhor do que o Velho. Ao menos, era isso que eu acreditava até receber uma pergunta sem sentido, beirando a bizarrice, como resposta para uma indagação séria e repleta de interesses educacionais. Era evidente que ele não sabia.

O encontrei na manhã seguinte, ainda bem cedo, sentado sozinho na cantina. Ele sorriu, com o queixo me indicou que havia café fresco no bule e fez sinal para eu me sentar à mesa ao seu lado. Assim que me acomodei, ele quis saber se eu tinha avançado nos meus entendimentos sobre o tempo. Confessei que não. O Velho tornou a indagar: “Qual a verdade da rosa?”. Abri os braços em lamento e disse que não achava qualquer graça naquela brincadeira. O meu interesse pelo assunto era sincero. Entretanto, ponderei, talvez somente os tolos queiram conhecer sobre o tempo. O bom monge discordou: “Não. Apenas os tolos têm a pretensão de possuir a resposta definitiva para um tema tão intrigante. O conhecimento do tempo é uma estrada repleta de portais. Em cada qual um enigma. Então, haverá permissão para se percorrer mais um trecho. A estrada é longa, os portais são muitos. O pressuposto para iniciação é saber sobre a verdade da rosa”. 

Insisti que não fazia sentido. O Velho sorriu com doçura e paciência, como se estivesse diante de um aluno que não aprende porque se nega a pensar de um jeito diferente do qual se acostumou. Com a sua voz serena, comentou: “Talvez Logunan possa lhe auxiliar”. Fiquei atônito. 

Logunan ou Logunã é um dos Orixás da Umbanda. Os Orixás são energias criadoras e ordenadoras do universo conforme a teologia que estrutura essa religião, que como todas as demais, quando praticadas através dos trilhos do amor, são importantes vias evolutivas e repletas de Luz. Sempre frequentei igrejas, templos, sinagogas, mesquitas, centros espíritas, ordens esotéricas, de diversas vertentes e diferentes tradições, com igual carinho, admiração e respeito. Adoro as Giras de Umbanda como se denominam os lindos cerimoniais, a sua fantástica ritualística e o incrível bem-estar que sinto durante e ao final dos trabalhos. Eu havia estudado um pouco sobre essa maravilhosa religião, que por datar de apenas algumas décadas, possui pouca literatura a respeito se comparada àquelas que estão a milênios no mundo. Todas têm a sua beleza e razão de existir. Sobre Logunan há muito pouca coisa escrita ou revelada. Basicamente, se sabe que é o Orixá responsável pelo tempo e pela fé. 

Comentei isso com o Velho. Ele sorriu como quem conduz uma criança a uma descoberta improvável e perguntou: “Por que a energia que conduz o tempo também cuida da fé?”. Eu não fazia a menor ideia, até porque nunca tinha me atentado a esse detalhe. Por perceber que eu não tinha a resposta, acrescentou: “Entender a correlação entre o tempo e a fé irá ajudá-lo a conhecer a verdade da rosa. Então, poderá ter uma melhor noção sobre o tempo”. Sem que eu falasse palavra, ele disse que precisava se preparar para a aula daquele dia. Antes de sair, piscou um olho e disse matreiro: “O tempo urge”. Observei-o saindo da cantina com os seus passos lentos, porém, seguros.

Eu ainda tomava café e navegava em meus pensamentos, quando fui informado que era para entrar em contato com alguém da minha família. Era urgente. A minha avó, que sempre tivera uma saúde privilegiada e uma impressionante vitalidade, apesar da idade avançada, até então, morara sozinha em sua casa em um subúrbio do Rio de Janeiro. Fazia todo o serviço, se mantinha alegre e bem-disposta. Frequentava a igreja do bairro, ajudava nas quermesses e no amparo aos necessitados. A poucas semanas de completar noventa anos, sofrera um derrame. As informações eram que ficaria com sequelas definitivas e passaria a precisar de ajuda. O seu estilo de vida autônomo e ativo chegara ao fim. Um novo ciclo se iniciara para ela por um tempo que ninguém era capaz de precisar. Conversei com uma prima ao telefone. Sugeri que nos reuníssemos para ampará-la. Se todos colaborassem, não haveria sobrecarga para ninguém. Ela me informou que já haviam feito uma reunião e decidiram que a melhor solução era interná-la em uma casa de repouso para idosos. Argumentou que lá teria a devida assistência, pessoas da mesma idade para interagir, atividades ocupacionais e poderíamos visitá-la sempre que quiséssemos, a qualquer dia e hora. Ela me tranquilizou dizendo para eu não me preocupar, pois, dona Valentina, como se chamava a minha avó, ficaria muito bem. Lembrei de como ela tinha sido importante para todos os netos. Quando crianças, passávamos os meses de férias na sua casa para que nossos pais pudessem trabalhar. Ela cuidava da gente com enorme paciência e infinito amor. A minha prima respondeu que não a estávamos abandonando, ao contrário, estávamos oferecendo a ela a oportunidade de ser bem-assistida e usufruir com qualidade o tempo que lhe restava. A casa de repouso era uma das vantagens da modernidade, alegou. Ao final, em tom de crítica, disse que ninguém deveria se sentir culpado. Era a melhor solução para todos. Ela estava sendo honesta.

Fiquei com um gosto amargo. Tive o ímpeto de retornar imediatamente. Contudo, ponderei comigo mesmo que não havia qualquer razão. A decisão já tinha sido tomada e cabia a mim entender o que toda a família já entendia. Na construção dos meus argumentos pesava também ter de abandonar aquele período de estudos no mosteiro, uma das atividades que eu mais me alegrava em fazer. Terminei o café e fui assistir ao curso. Não consegui me concentrar na aula. No intervalo, fui passear por uma das trilhas da montanha. Eu precisava pensar e compreender o que tanto me incomodava. Uma escolha sensata tinha sido feita e, como disse a minha prima, não podíamos nos deixar conduzir por nenhuma culpa. O melhor estava sendo oferecido à dona Valentina.

Caminhei até um platô, bem no alto, de onde era possível avistar um lindo vale verdejante aos meus pés. Muitas vezes fui àquele local para refletir. Havia silêncio e quietude. Recostei-me em uma pedra e me deixei envolver pelas vibrações telúricas. Muitas ideias iam e vinham. São muitas vozes que nos habitam e eu vinha aprendendo a conversar com todas elas, identificar as suas origens, acatar algumas e educar outras. Tinha entendido também sobre qual critério usar para escolher quais ideias mereciam acolhimento. Os princípios orientadores eram os mesmos das plenitudes: liberdade, dignidade, paz, felicidade e amor. Um pensamento se fazia presente com muita força naquele momento: dona Valentina sempre fora uma mulher livre. Eram muitas as histórias que mostravam atitudes além do comportamento comum à sua geração. Ela nunca esteve presa ao seu tempo. Pois, viveu de acordo com a sua verdade, revolucionária aos padrões de uma época. Porém, dignos por não prejudicarem ninguém; amorosos por não causarem nenhum mal, salvo a falsa moralidade dos capatazes de plantão; pacíficos, por não insistir que ninguém acompanhasse o seu jeito de ser; feliz, como são as pessoas que fazem girar a roda da vida por acreditarem que a sua própria força lhes concede o poder de voar além do alcance dos estilingues da mesquinharia. Esta força gerada em si mesmo, em plena sintonia com o Universo, se chama fé.

Essa frase me chamou atenção, ela nunca esteve presa ao seu tempo. Sim, o tempo pode se tornar uma prisão. Quem a libertou foi a certeza de acreditar que em si habitava todo o poder da vida. Desde que não fizesse aos outros aquilo que não gostaria que fizessem a ela, tudo lhe era permitido. Isto se resume em amor. Mas não é pouco; ao contrário, é luz suficiente para iluminar a escuridão do mundo. Outra ideia que me ocorrera merecia análise cuidadosa: quem a libertou foi a certeza de acreditar que em si habitava todo o poder da vida. Isto é fé. Por princípio, por se tratar de uma virtude, a fé é instrumento da Luz e um dos atributos do amor; portanto, a fé é uma indispensável ferramenta evolutiva. A fé são as asas que permitem o voo para além dos muros da prisão do tempo, que se desmancha diante de uma existência compromissada com a evolução do espírito que anima o corpo. 

Por que o tempo pode se tornar uma prisão? A existência é uma experiência de iluminação oferecida ao espírito através do corpo. Quando aproveitada, se liberta do ciclo reencarnatório, como se referem os espíritas, ou da Roda do Samsara, termo utilizado por doutrinas orientais. Do contrário, não consegue avançar até as esferas mais sutis de existência, onde a vida prossegue com maior plenitude.

Enquanto tempo para o corpo é medido pelos dias e horas planetárias, para o espírito o tempo se mede pelos ciclos evolutivos completados. Este é o tempo cósmico, infinito e libertador. Para tanto, é indispensável descobrir a própria força e aprender a usar este poder. Ele vem através da fé em si mesmo e na Luz que está adormecida em você e em mim. Apenas o amor a desperta.

Fomos condicionados a interpretar a fé como a crença no divino. Está correto. Acreditar nessa força maior é o ato primordial da fé. Contudo, a fé é mais. Independente da maneira como cada pessoa tenha a sua compreensão sobre Deus, é indispensável que o encontremos em todos os lugares, principalmente dentro da gente. Manifestá-lo através de mim se torna possível tão e somente pelo amor já florescido e aplicado em cada uma das minhas escolhas. O amor vivido é a mais valiosa expressão do sagrado. Esta experiência é revolucionária. A consciência do poder transformador do seu próprio amor se chama fé.

Amar mais e melhor me liberta dos limites do tempo.

Naquele instante ficou claro a correlação entre o tempo e a fé. Olhei para o céu e sorri sozinho. Talvez, não tão sozinho. Agradeci a Logunan por aquela conexão e clareza de ideias. Era hora de voltar, eu sabia disto desde o início. Pelas limitações físicas que se impunham, dona Valentina, perdera a sua autonomia. Perdera ou lhe tinha sido negada? Embora a liberdade seja do espírito, quando já luminoso, a autonomia fala ao corpo. A palavra autonomiatem origem grega e deriva de autos(próprio) e nomos(regra). Ou seja, viver de acordo com as próprias regras. É um direito que, como tal, se legitima quando conquistado. Valentina tinha construído um jeito singular de ser e viver. Apesar de limitado, em parte, pelas dificuldades físicas que surgiram, de outra, muitas possibilidades ainda me pareciam viáveis a ela. Será que a vontade dela foi incluída na balança das boas e justas decisões ou somente prevaleceu os interesses e a comodidade da família? Quanto a mim, era hora de trocar um prazer de curto prazo por outro de longo alcance. Do contrário, eu ficaria preso ao meu próprio tempo. Entender o significado de cada situação nos permite abrir portas que nem sabíamos que existia. Simplesmente porque não as víamos.

Pleno, como ficamos quando a verdade nos toma de assalto, retornei ao mosteiro. Procurei o Velho para justificar os motivos pelos quais eu interromperia aquele ciclo de estudos, mas que estaria de volta no ano seguinte. Ele franziu as sobrancelhas e disse: “Não há interrupção de nenhuma. Em verdade, neste instante, você está dando prosseguimento a um valioso ciclo de aprendizados. Sempre crescemos quando fazemos o caminho de volta para casa. Elabore e aproveite, filho”. Ao se despedir, o monge acrescentou: “Você está bem próximo de descobrir a verdade da rosa”, me lembrou do enigma ainda não resolvido.

No Rio de Janeiro, fui direto à casa de repouso. Havia muitos velhinhos internados, todos muito bem cuidados. Alguns alegres e adaptados à nova realidade, outros nem tanto. Fui informado que a minha avó se recusava a sair do quarto que ocupava. Ela tinha os olhos tristes. Pedi que nos deixassem a sós. Trocamos um abraço e algumas lágrimas. Falei que estava ali para levá-la para a sua casa, caso ela assim quisesse. Expliquei que contraria alguns funcionários para cuidar dela, além de fisioterapeuta e fonoaudiólogo para levarem adiante o tratamento necessário. Um grande amigo era geriatra e tinha se prontificado quanto à parte clínica. Eu supervisionaria tudo e a visitaria quase todos os dias. Apesar da dificuldade em articular as palavras, ela disse: “Você terá de se opor a toda a família. Não quero brigas”. Expliquei que acreditava que não haveria nenhuma confusão. No mais, lembrei a Valentina: “Faço por você, mas faço também por mim”.

No mesmo dia, falei com todos os primos. De fato, não houve briga, apenas pequenas contrariedades. Em síntese, falaram que ao insistir em agir movido por culpa, nada restaria da minha sensatez. Argumentaram que, embora amassem a vovó, não tinham qualquer dívida com ela. Mas que eu fizesse diferente, caso quisesse. Apenas lembraram que a partir do momento que eu a retirasse da casa de repouso, a responsabilidade seria unicamente minha. Falei que tinha consciência disto. Um deles, um pouco mais exaltado, chegou a dizer que lavava as mãos. Nada respondi, mas recordei que essas palavras a História atribuía a Pilatos. Ao contrário do que ele poderia prever, fiquei alegre por estar do outro lado

Para ser sincero, não foi nada difícil nem dispendioso. Nenhum ato de heroísmo foi praticado. Foi tudo bem simples. Como Valentina recebia uma generosa aposentadoria, o seu dinheiro foi suficiente para cobrir todas as despesas. A mim, coube apenas contratar os funcionários e administrar o funcionamento da casa e dos cuidados que ela passaria a necessitar. Foi tudo bem tranquilo e bem mais fácil do que parecia de início. A minha rotina não quase foi não afetada e as pequenas mudanças trouxeram enorme ganhos pela convivência mais intensa que passei a viver ao lado da minha avó. Ninguém é livre antes de se tornar sábio. Havia uma enorme sabedoria naquela mulher. Foram dias maravilhosos.

Como é típico nos subúrbios, onde a convivência entre vizinhos é mais intensa, havia uma pequena multidão para recepcionar Valentina. Eu tinha providenciado a limpeza da casa, mas afeto não se compra. Ela ficou emocionada ao encontrar com pessoas que estavam felizes por reencontrá-la. Ficou encantada a ver como estavam bem cuidadas as plantas que tanto gostava. Foi às lágrimas ao lhe entregarem a Frida, a pequena vira-lata que a acompanhava havia anos; sem que ninguém pedisse, uma vizinha ficara cuidando da cachorrinha ao saber da sua hospitalização. Foi uma linda festa, quase tão bonita quanto o sorriso que ela me ofereceu naquele dia.

À medida que se recuperava, Valentina assumia o comando da casa e da vida. A convivência com pessoas com as quais tinha afinidade era parte vital do tratamento. O poder do amor é incomensurável. Uma parte da melhora eram méritos dos médicos e demais profissionais da saúde, outra, foi de responsabilidade da sua própria consciência desperta. A minha presença não mais se impunha por necessidade, mas por pura vontade. Foram muitas e longas conversas sobre os mais diversos assuntos. Várias histórias divertidas que se perderiam sem aqueles dias encantadores. Entendi como o exercício da autonomia, nos limites específicos de cada corpo, impulsionam o despertar da liberdade, um atributo geral ao espírito que somos.

Das muitas conversas que tive com a dona Valentina, duas foram angulares para mim. Os primos a visitavam no seu aniversário e telefonavam no Natal. Eu tinha providenciado um bolo para a sua festa de noventa e um anos. Convidei os vizinhos também. Talvez contrariada por eu pensar e agir de modo diferente, uma das minhas primas insistiu no surrado discurso de que a culpa me movia. Sentada em sua cadeira de balanço, mas atenta aos acontecimentos, a nossa avó ouviu e respondeu por mim. Ela falou com a voz serena daqueles que vivem em paz com a própria verdade: “Filha, o que você interpreta como culpa, ele entende como amor. Amor sem comprometimento é amor de superfície”.

A outra conversa, foi um pouco antes do dia sem fim, quando ela partiu rumo às Terras Altas. Comentei se havia mágoa pelo fato de ela ter cuidado de todos os netos com tanto amor e receber tão pouca retribuição. Ela arqueou os lábios em leve sorriso e disse com a pureza da alma: “De jeito nenhum. Uma rosa não se lamenta por alguém passar apressado sem reparar na beleza que ela se empenhou em oferecer ao jardim, não se entristecerá por não terem sentido o perfume com o qual ela melhorou o ar que todos respiram, por não terem percebido as cores que ela ofereceu para acrescentar beleza aos dias de toda gente, por não terem entendido que desenho curvo das suas pétalas exaltam o poder infinito da criação. Ela vive em plenitude por oferecer o seu melhor, ainda que ninguém a compreenda. Assim, a verdade da rosa se faz a mesma do Criador: o amor da rosa também iluminará os passos daqueles que negam a luz, mas que muitas vezes, mesmo sem saber, deixaram de tropeçar porque conseguiram ver algo que havia neles e nunca se deram conta. Talvez nunca reconheçam a beleza que a rosa trouxe para as suas vidas, jamais admitam que algumas vezes foram salvos da asfixia por causa do bom perfume da rosa. Não importa, ela conhece a verdade. Isto basta. Este é o seu poder. O único perigo na existência de uma rosa é ela se perder no tempo e morrer ainda em botão. A verdade da rosa a ensina que a fé na sua própria força é o que a fará florir. Ainda que muitos desprezem, não conseguirão impedir. Ela encanta em um lugar onde os brutos não alcançam”.

“Alguns consideram a rosa frágil, capaz de se despetalar diante de um mero movimento brusco. Não sabem que o poder da rosa reside em sua fé, ou seja, ao florescer, ela irá iluminar muitos corações. Assim, ao contrário daqueles que se acreditam fortes, ela supera o tempo da existência e conquista o direito de entrar na vida. Esta é a verdade da rosa. A força mais preciosa possui uma sutileza ainda pouco perceptível ao nosso tempo”.

Naquele momento, tive a sensação de que dona Valentina era uma mensageira de Logunan.

O tempo não apenas se explica, mas se define e ganha novos contornos por intermédio da fé. O tempo pode funcionar como prisão ou como asas, a depender do florescimento da rosa. O poder e a verdade em si mesmo revelam a fé. O encontro com a essência cria a sintonia com o Universo. Então, todas as montanhas se moverão para que se possa ver o que está por detrás delas.

Entender o significado de cada situação é encontrar o amor oculto no sofrimento de cada pessoa; da sabedoria escondida nas dificuldades de cada dia. Então, toda a escuridão se fará Luz.

Conversei sobre isso com o Velho quando retornei ao mosteiro quase dois anos depois. Ele sorriu e comentou: “Tudo começa, caminha e se encerra no amor, virtude na qual existem diversos formatos de entendimento, dos mais selvagens aos mais sublimes. Há que se ter paciência, pois cada um traz a verdade ao nível da própria compreensão. Os seus primos foram tão honestos quanto você”.

Esvaziou a caneca de café e concluiu: “A estrada rumo à Luz se faz somente pelos trilhos do amor. A compreensão sobre a fé é o motor da locomotiva a nos conduzir ao destino. O tempo é apenas uma das estações, daquelas que possuem muitas bifurcações para diferentes lugares. Enquanto o maquinista não aprender a fazer a leitura do mapa a viagem não poderá prosseguir”.

Pediu licença, se levantou e foi embora. Fiquei observando o Velho sair cantina com os seus passos lentos, porém, seguros”.

Imagem: Russellgr – Dreamstime.com

15 comments

IRINEU FERREIRA agosto 12, 2020 at 9:50 am

Simplesmente espetacular, Yoskhaz
Desde muito tempo leio seus textos pela manha acompanhado de uma xícara fumegante de café.
Não tem nada melhor para começar o dia.
GRATO

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Fernando Cesar Machado agosto 13, 2020 at 1:41 am

Gratidão profunda e sem fim…

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Terumi agosto 14, 2020 at 12:09 am

Gratidão! 🙏

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Phaedra Müller agosto 15, 2020 at 12:46 pm

Que lindeza de texto… Quanto aprendizado! Obrigada

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Mariseh Santòs Gonçalves agosto 16, 2020 at 9:00 am

Gratidão sempre!!!

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ADRIANO CAMARGO VIEIRA agosto 16, 2020 at 12:08 pm

Lindo texto que traduz a essência do amor. Gratidão!

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Aléxia Pauline Tavares Altíssimo agosto 17, 2020 at 8:27 am

Sua poesia é um encanto! ❤️✨

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Rafael Silva Bezerra agosto 17, 2020 at 9:35 am

Emocionante Yoskhaz, gratidão por seus textos. 🙏🏼

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Adriana Dinoá agosto 20, 2020 at 11:44 pm

O amor..Difícil tentar traduzi-lo em palavras..Uma plenitude em si..Quanto mais damos mais plenos ficamos..
Ao entender e amar profundamente sua avó você recebeu o maior presente..O amor dela da forma mais pura e sublime.Algo que certamente irá levar na bagagem rumo às terras altas.Sensibilidade,delicadeza ,compaixão e coragem foram importantes passos no caminho.
Gratidão por ser um guia de luz em meu caminho ,Yoskhaz✨

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Adélia Maria Milani agosto 21, 2020 at 10:38 pm

Gratidão infinita!!!

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Caroline Martesi agosto 24, 2020 at 7:17 am

‘Com seus passos lentos , porém seguros’💙✨uma estrela na minha vida vc é, gratidão.

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Gleiza Jordânia setembro 3, 2020 at 3:28 pm

A alma se renova em cada leitura 😊

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Viviane Barbosa setembro 3, 2020 at 8:29 pm

Encantada com tamanha simplicidade e sabedoria!!!

Gratidão infinita e muita luz a todos nós.

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Santana setembro 19, 2020 at 5:44 pm

🌵🙏🏽

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Paulo Vitor Alves dos Santos junho 6, 2022 at 7:23 pm

Obrigado! 🙏🏾

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